domingo, 28 de fevereiro de 2016

Scott Johnsonn Formiga.





Da baixa a Alfama é um bom esticão. Mais ainda se em vez de procurarmos as planuras do Tejo nos formos aventurar por atalhos desta Lisboa labirinto de vielas a amarinhar colinas. Scott fez essa escolha. Tinha passado a tarde a olhar para uns mapas e era fácil, ia até ao Martim Moniz, Mouraria e tal e havia de ir dar a Alfama. Era este o plano. Bom, a estratégia era ir seguindo os caminhos e o instinto de seguir caminhos não poderia esmorecer nele.
Mas o caminho também tinha um plano. Ou melhor, ele era o próprio plano, traçado ininterruptamente desde o primeiro ao último homem. Era a soma das sugestões de cada indivíduo, das suas conveniências contextuais. Obreiros anónimos, pedreiros livres de uma obra sem engenheiros nem topógrafos. Só movidos pela necessidade, a vontade, o desejo, a urgência que engendram soluções muito pouco lineares, por certo. Por certas.
Veredas são optimizações resultantes de tentativas caóticas de dominar o espaço e estão profundamente entranhadas na memória colectiva dos lugares. Os indivíduos interagem de forma indirecta, através do próprio caminho e a comunicação entre os que calcorreiam os caminhos torna-se desnecessária, senão mesmo evitável. E o mapa se desenha.
(Subitamente o mapa reprime o espaço e o movimento dos seres, como aranhas presas na teia por elas próprias, livremente, construída. O mapa é o plano mestre, sempre inacabado. É a soma de todas as liberdades, ou seja, a maior das tiranias. Só nos espaços em que não emergiu um caminho é que o homem se pode sentar e descansar.)
E surgem as casas, as praças, os jardins. A cidade vai-se instalando por entre os caminhos. As cidades atraem os homens como formigas o formigueiro.
Scott limitava-se a seguir o seu caminho e observava como os edifícios preenchiam o espaço entre as vias, sem se dar conta do mapa que emergia, de baixo para cima.
Começou a chover. Num instante ficou todo encharcado. Esforçava-se por proteger os seus papéis. A água descia como varetas de vidro. Dos beirais empenados não vinha abrigo, antes uma cascata, por isso continuava a andar, a cheirar a chuva, a ver como ela mudava a cor das coisas e os brilhos que deixava no empedrado. Já não se incomodava com ela. Nem com os manuscritos, metade debaixo do braço a outra metade a servir de abrigo para a cabeça e vários perdidos pelo chão.
Avançava os trilhos prévios que não buliam à sua passagem. Era a sua errância que ganhava corpo agora. “De que serve existir um caminho se eu não o quiser seguir?” E na sua obstinação eram poucos os caminhos que lhe apeteciam. Afinal um estímulo é um estímulo não é uma ordem – Era o que ele tinha ouvido a um homem novo com cara de cientista que estava numa esplanada a falar com alguém que também fumava muitos cigarros.
Andava sem pressa e gozava daquela ilusão masculina de que conseguia perceber a racionalidade em que se movia. Confiava na inteligência das vielas. Haveriam de lhe ensinar o caminho, de lho sussurrar ao ouvido.
Agora as palavras na sua cabeça estendiam-se como ruas, ora largas e iluminadas, ora estreitas e escuras, concorridas ou não, curtas ou compridas, bifurcadas, cruzadas, perpendiculares… Formavam um traçado, um desenho, um poema de sinais. No chão. Na cabeça. No papel.
A profusão das alternativas na caminhada, a sua escolha e o esforço físico implicado, assemelhavam-se-lhe ao processo de escrever. A torrente de pensamentos que conduz à escrita, como o conjunto dos caminhos que conduzem a um determinado ponto no espaço, constituem a matéria que corporiza o desejo, a palavra, a frase, a obra.

Se alguém desenhasse o caminho que Scott Johnsonn fez para chegar ao Tejo, daria um belo trabalho de filigrana, talvez mesmo um coração daqueles do Minho, cheio de palavras andarilhas.

(Isabel Figueiredo)