Da baixa a Alfama
é um bom esticão. Mais ainda se em vez de procurarmos as planuras do Tejo nos
formos aventurar por atalhos desta Lisboa labirinto de vielas a amarinhar
colinas. Scott fez essa escolha. Tinha passado a tarde a olhar para uns mapas e
era fácil, ia até ao Martim Moniz, Mouraria e tal e havia de ir dar a Alfama.
Era este o plano. Bom, a estratégia era ir seguindo os caminhos e o instinto de
seguir caminhos não poderia esmorecer nele.
Mas o caminho
também tinha um plano. Ou melhor, ele era o próprio plano, traçado
ininterruptamente desde o primeiro ao último homem. Era a soma das sugestões de
cada indivíduo, das suas conveniências contextuais. Obreiros anónimos,
pedreiros livres de uma obra sem engenheiros nem topógrafos. Só movidos pela
necessidade, a vontade, o desejo, a urgência que engendram soluções muito pouco
lineares, por certo. Por certas.
Veredas são
optimizações resultantes de tentativas caóticas de dominar o espaço e estão
profundamente entranhadas na memória colectiva dos lugares. Os indivíduos
interagem de forma indirecta, através do próprio caminho e a comunicação entre
os que calcorreiam os caminhos torna-se desnecessária, senão mesmo evitável. E
o mapa se desenha.
(Subitamente o
mapa reprime o espaço e o movimento dos seres, como aranhas presas na teia por
elas próprias, livremente, construída. O mapa é o plano mestre, sempre
inacabado. É a soma de todas as liberdades, ou seja, a maior das tiranias. Só
nos espaços em que não emergiu um caminho é que o homem se pode sentar e
descansar.)
E surgem as casas,
as praças, os jardins. A cidade vai-se instalando por entre os caminhos. As
cidades atraem os homens como formigas o formigueiro.
Scott limitava-se
a seguir o seu caminho e observava como os edifícios preenchiam o espaço entre
as vias, sem se dar conta do mapa que emergia, de baixo para cima.
Começou a chover.
Num instante ficou todo encharcado. Esforçava-se por proteger os seus papéis. A
água descia como varetas de vidro. Dos beirais empenados não vinha abrigo,
antes uma cascata, por isso continuava a andar, a cheirar a chuva, a ver como
ela mudava a cor das coisas e os brilhos que deixava no empedrado. Já não se
incomodava com ela. Nem com os manuscritos, metade debaixo do braço a outra
metade a servir de abrigo para a cabeça e vários perdidos pelo chão.
Avançava os
trilhos prévios que não buliam à sua passagem. Era a sua errância que ganhava
corpo agora. “De que serve existir um caminho se eu não o quiser seguir?” E na
sua obstinação eram poucos os caminhos que lhe apeteciam. Afinal um estímulo é
um estímulo não é uma ordem – Era o que ele tinha ouvido a um homem novo com
cara de cientista que estava numa esplanada a falar com alguém que também
fumava muitos cigarros.
Andava sem pressa
e gozava daquela ilusão masculina de que conseguia perceber a racionalidade em
que se movia. Confiava na inteligência das vielas. Haveriam de lhe ensinar o
caminho, de lho sussurrar ao ouvido.
Agora as palavras
na sua cabeça estendiam-se como ruas, ora largas e iluminadas, ora estreitas e
escuras, concorridas ou não, curtas ou compridas, bifurcadas, cruzadas,
perpendiculares… Formavam um traçado, um desenho, um poema de sinais. No chão.
Na cabeça. No papel.
A profusão das alternativas na caminhada, a sua escolha e o esforço
físico implicado, assemelhavam-se-lhe ao processo de escrever. A torrente de
pensamentos que conduz à escrita, como o conjunto dos caminhos que conduzem a
um determinado ponto no espaço, constituem a matéria que corporiza o desejo, a
palavra, a frase, a obra.
Se alguém
desenhasse o caminho que Scott Johnsonn fez para chegar ao Tejo, daria um belo
trabalho de filigrana, talvez mesmo um coração daqueles do Minho, cheio de
palavras andarilhas.
(Isabel Figueiredo)
(Isabel Figueiredo)