domingo, 13 de setembro de 2009

A cabeça de Scott Johnsonn em Lisboa

Estava num quarto logo ali à Rua das Portas de Santo Antão. Não chegou a fixar o nome da residência. Deixou as malas por abrir. Não continham nada de pressa nenhuma os gestos com que olhou o espelho e alisou o cabelo com os dedos e um pouco de água. “tenho de ir ao barbeiro. será que há um barbeiro aqui. vou perguntar na recepção. eu gosto de patilhas. a minha avó também gostava de patilhas. como eu.”

Coisas rudes e coisas sublimes afluíam-lhe indiscriminadamente ao cérebro. Os pensamentos voavam sonoros, shhhhhhh, vuuuuuu, chuááááá, como nos filmes de acção. “eu. eu não sou eu nenhum. apenas uma pessoa a mais nas rotinas das ruas velhas da cidade. não faço falta. ninguém me espera. ninguém espera ninguém… o fado… a saudade… não, ninguém espera ninguém… somos sempre sós.”

Eram pensamentos filosóficos, apocalípticos… “Está deprimido”, disse o médico que primeiro foi obrigado, em consulta, a dar opinião sobre algo de que não percebia nada. É comum. Depois as classificações foram-se tornando mais difíceis de pronunciar e de decifrar, ao nível da especialidade: maníaco-depressivo, bipolar, esquizofrénico, psicótico… de tudo se ouviu. Ele continuava a apertar a cabeça entre as mãos. E a escrever.

“não me vejo a andar nas ruas. só as ruas andam sobre mim como uma projecção no espaço. o espaço cheio de ar, cheira a nada e a enxofre. não sei porquê, enxofre. deve ser do carvão e do petróleo que, em combustão, movimentam as pessoas e assam sardinhas na grelha. um analista havia de pensar: enxofre-chamas; chamas-inferno; inferno-culpa; culpa-expiação… e lá estaria eu, de calções curtos, no centro de todo o trauma, um rapaz-problema… se ao menos eles pudessem sentir o imbróglio que é ser eu.”

Pensou muito depressa coisas muito cansativas - fiuuuuuuuuu - e aterrou no pensamento que haveria de se tornar tema e lema e depois dilema: “melhor era não pensar”. Tentou meditar. Já muita gente bem intencionada o havia querido ensinar a meditar… a deixar fluir, só fluir. Não dava! Cada vez mais ágeis as vozes do pensamento abafavam todos os sentidos. Como ele sofria com o pensamento. Como se debatia com a autonomia dele. “não pensar, isso é que era…”

Desceu os quatro lances de escada rangente até à rua. Voltou a sentir aquela impressão holográfica da realidade ou de si próprio. Por várias vezes chocou com quem dele se não desviava a tempo por distracção ou fé. Sentia-se flutuar num campo cinético desadequado. Era como se o turbilhão de pensamentos o impedisse de se conectar realmente com o mundo. Zzzzuummmm. “penso, logo existo. que estupidez René… o pensamento tomou conta de mim e eu morreu.”

Quando não escrevia tinha sempre aquela dor no cérebro. Se escrevia era como se a torrente mental se acalmasse no papel e não chegasse a pertencer-lhe, não chegasse a poder pertencer-lhe. O pior era quando as elucubrações já vinham numa tal forma literária, às vezes poética, que faziam doer a mente e o coração ao mesmo tempo e, se ele as não podia verter na folha, chegava a ter espasmos torácicos que eram autênticos ataques cardíacos… A psiquiatria chamava-lhe somatização.

Em miúdo o avô levou-o à ópera. Era uma história muito triste, muito triste. Uma paixão destrutiva como tantas. Uma mulher que esperava ver um navio a crescer para o porto. Un bel dì vedremo. Por fim, quando a esperança se transformou em ácida solução de mágoa, ela abraçou o filho, afagou a lâmina, cantou a ária e con onor muore. Não era uma coisa para crianças, tanta dor.

Vummmmm, zzzzeeeeeee. “não era uma coisa para crianças, tanta dor.” Quando agora pensava naquela Obra, o que mais ressaía não era exactamente a história. “pobre miúdo, ali, no centro do palco, quatro anos. apertado, abanado, sufocado… ridículo. o que iria na cabeça daquela criança repetidamente levada à intimidade dos seios trementes de uma mulher que lhe gritava ao ouvido palavras como arpões, incompreensíveis e ensurdecedoramente encarnadas de batom. coitado… e va, gioca, gioca…”

Naquele dia não teve que lutar com o pensamento. O teatro grandioso, os cenários, os adereços, as vozes, a música, o drama, o movimento… Foi das poucas vezes que conseguiu acalmar aquele bicho. No entanto foi um alívio passageiro, pois a ópera, nos seus três actos, passou a ser uma temática recorrente dos seus concorrentes pensamentos.

Quando desceu as escadas dirigiu-se à primeira pessoa que encontrou e disse, com os olhos muito abertos e articulando as palavras como um surdo: “- Eu querer ir Ópera”, enquanto fazia com os braços o desenho de um edifício enorme e, para se perceber a dimensão, inflava as bochechas. Também falava alto, claro, porque é assim mesmo e porque aquelas pessoas estavam na tal dimensão holográfica, costuradas entre dois feixes, luz e laser e puf… É preciso não esquecer isso.

As pessoas eram muito simpáticas e procuravam ajudar e ensinavam: “Como-vou-para-a-Ópera?” Ele percebia o que lia e o que ouvia, mas falar… Era muito difícil para ele o português, o de Portugal mais que o brasileiro. As vogais fechadas eram muito penosas de pronunciar e ele tinha vergonha de quebrar aquele sigilo que a língua portuguesa encerra… uma espécie de não dito dentro de cada palavra… “- comô vau Ôpera? não, não. - cômô vó pra Opera?”

De esquina em esquina, perguntando sempre e obtendo sempre a hospitaleira atitude lusitana de namorar os estrangeiros, chegou à frente do teatro de ópera com uma fórmula muito diplomática num português bastante aceitável: “- Por favor, como vou para a Ópera?” Mas não havia nenhuma ópera em cartaz. Nada. Dali a três meses estreava “O Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner.

Götterdämmerung, Der Ring des Nibelungen. o avô adorava Wagner. e agora? vou ao Tejo bar? mas ainda é cedo, o Francisco disse que antes das 10 da noite não valia a pena ir…” Rodou sobre si mesmo 180º e “ah, Fernando Pessoa?” Atravessou a praça do S. Carlos com os olhos em alvo até conseguir decifrar toda a placa. Leu em voz alta: “No 4º andar desta casa nasceu em 13 de Junho de 1888 o poeta Fernando Pessoa”. Para além disso havia uma estátua de um homem com um livro no lugar da cabeça. Deu-lhe a volta três vezes de boca aberta. “Pessoa. Fernando Pessoa nasceu aqui, em frente à Ópera. devia ser assim que apaziguava o espírito… que feliz que eu estou de estar aqui… que feliz que eu sou.”

Não era bem assim, mas o que é que isso interessa? Ele não sabia que Pessoa só ali vivera até aos cinco anos; também não consta que fosse um amante de Ópera e é pouco provável que alguma vez tenha assistido a uma enquanto ali viveu. E, por outro lado, Scott não era feliz.

Começou a caminhar sorridente. Não conseguiu ir à ópera, mas conseguiu concentrar-se em pensamentos muito simples de mero reconhecimento das coisas. Pessoa também ajudava… vieram-lhe à cabeça muitos excertos que lhe ocupavam totalmente o cérebro e o impediam de se perder nos seus caóticos pensamentos. Subiu para a rua António Maria Cardoso (embora ele não soubesse). Anoitecia.

“para onde vão aquelas pessoas todas. é um clube? um cinema? vou saber.”
Era o Teatro S. Luiz. E a causa do humano movimento era o ensaio geral de uma peça de teatro[1]. Por ser estrangeiro e até falar um pouco de português e por ser estrangeiro (já falámos sobre isso) lá o deixaram entrar. “- Segundo balcão, por favor.”

“lindo, lindo. que teatro bonito. oh…” Era um musical. Feito por gente muito jovem, irreverentes, excessivos. Estava fascinado com a electricidade musical e a qualidade vocal dos actores. Falado em português, alemão e inglês, o texto era, só por isso e para ele, uma ocupação a tempo inteiro. Sorria. A música era espantosa e comandava. Também tinha projecções, numa enorme tela que ocupava todo o fundo do palco. “muito bom, muito bom”. Mas o mais surpreendente dos elementos cenográficos era o fosso onde estavam os crocodilos. A separar a cena da plateia, uma piscina, onde três actores nadavam durante todo o espectáculo. Os personagens iam caindo ao fosso na evolução nonsense da narrativa.

Tzzzuuuuuuuu. zzziiiggggg. “o avô teria gostado da música, dos músicos. o teatro é belíssimo. de que ano será? os crocodilos estão sempre lá, pacientes. mas se não forem eles serão os nervosos tigres… a pianista é óptima e canta como uma possuída, afinadíssima. um certo romantismo juvenil trespassa toda a tecnologia do espectáculo… que horas são? quase 11… o candelabro é majestoso…” Foi quando os seus olhos desciam do lustroso lustre para o palco que a viram. A luz aumentou um pouco e ele pode ler a frase que encimava a boca de cena: Fazei mais o que souberdes. Camões.

Por um momento o mundo voltou a parecer projectado a partir de uma gravação num painel verde de croma key. Shuammmmmm. “incrível. incrível. aquilo não é dos Lusíadas[2]. esse conheço eu de fio a pavio. Pessoa e agora Camões... há quem diga que era melhor que Pessoa. eu não acho que se deva comparar caldo verde com sopa de feijão. eu gosto das duas. não gosto é de canja... mas nós, prováveis bipolares, somos família. Camões é pai, ninguém questiona. que maravilha. Fazei mais o que souberdes…” E escreveu em inglês num pequeno papel: do more what you do better.

A peça terminou. Saiu. “o que é que eu sei fazer? pensar? escrever? É a mesma coisa, a mesma coisa… Camões diz-me para escrever mais. é o que ele me diz. é o que eu vou fazer. talvez pensar como o Pessoa e escrever como o Camões. talvez regressar a Nova Iorque a nado, com os meus escritos como vela”.

Sorriu à folclórica imagem. Na manhã seguinte teria de ir arrolar o seu acervo literário, como lhe chamava o amigo Francisco que o havia feito jurar que iria à Inspecção-geral das Actividades Económicas, nos Restauradores, registar as suas papeladas. Ele preparara tudo: uma enorme mala com dois exemplares de cada texto para ali ficarem arquivados e ainda um requerimento de registo por cada um, já devidamente preenchidos, que ele foi buscar à Internet. Não podia desapontá-lo. “amanhã logo de manhã vou entregar os papéis do Francisco… quer dizer, os meus… senão ele… eu nem sei…” Para além da mala grande tinha trazido uma segunda. Essa escapara ao controlo do Francisco. Tinha dentro cinco camisas, um blusão, uns sapatos ligeiros e alguma roupa interior. Como sobrava muito espaço, colocou lá dentro todos os originais das suas obras. Uma decisão desastrosa. Ou não…

Já era tarde para ir ao Tejo Bar (mal ele sabia que o Tejo não dorme). Andou um pouco e deixou-se apanhar por um táxi, nem mais nem menos que no Largo de Camões. “Parra Ruá da Porrtass de Saunto Então”. O taxista sorriu, não disse nada durante o curto trajecto e cobrou-lhe o triplo do valor da corrida (também há namoros cruéis).

Nunca chegou a saber quem era a figura que rompia o vento no centro daquela praça inclinada. Também não soube que, ali mesmo no Chiado, Pessoa pousava a sua chávena de café e lançava um olhar cúmplice a Camões. Ambas as brônzeas criaturas haviam notado aquele sujeito ínvio.
Tampouco visitou, mesmo ao lado da pensão, o túnel que dava acesso à Cadeia do Tronco, onde Camões esteve preso, por se envolver em refregas de mancebos, e depois desterrado por dezasseis anos que haveriam de se corporizar nos Lusíadas e em tanta poesia.

Mas não faz mal, é tudo parte de uma imensa harmonia que se gerou naquela noite. Nem sempre consciencializada. E ainda bem.


[1] Teatro Praga no ensaio geral do espectáculo “Demo”.
[2] Farsa El-rei Seleuco (Camões, 1587) “Moça: Por certo que tendes graça / Em tudo quanto fizerdes. / Fazei mais o que souberdes.”

(Isabel F.)