sábado, 20 de março de 2010

A cabecinha do Ondjaki

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Lembrar de coisas lidas há tanto tempo, ainda por cima naquele inglês rococó e traiçoeiro do Scott Johnsonn poderia ser considerado uma grande bravata se para isso não tivessem contribuido tantas madrugadas, muito assovio e um bagaço de (pasmem) sessenta e cinco anos bem conservados. Pois lembrou, recriou e criou mas não me perguntem quais os seus e quais os da personagem. Nem ele saberia dizê-lo.



I

a dezanove de março de

mil novecentos e lá vai

a noite

havia um rumor da

madrugada entre o

silêncio das velas

e o corpo da luz


- depois das vozes só o

cáustico rugido do

álcool,

só a dor da solidão no quarto

minguante do meu

rosto sozinho,

entre lágrima e

sofreguidão

entre maresia e alentejo

eu vi a sombra do meu eu

no corpo de uma alegria,

perto – dentro

do bar Tejo…

II

e havia entre o

som das lágrimas

o grito das mãos

suadas

sobre o tambor

do teu corpo

e o teu corpo

tinha um nome…

era Lisboa!

III

agora que a aguardente

de quarenta e sete

- depois de tudo o que fez –

chegou a

dois mil e dez,

eu sou eco do meu eu

depois do que

nem vi,

sonho, mansidão,

rebeldia,

entre o resto do que vi

de noite

e o que hei-de inventar

de dia…


(sorrindo…) –

IV

a vida é um vôo

onde depois da fila 42

já se pode

fumar…









V

agora que dormem estes olhos

sobre o dorso

da noite lisboeta,

restam vozes gritadas

na calma de um

murmúrio

disfarçado de

segredo,


e eu quero ser

o adormecer dos teus

olhos

sobre uma Lisboa feita dorso

de um rio,

feita leito, leite, de um eterno

encantamento…


(…)

afinal a noite

era uma vela

acesa sob

a densa luz

invisível dos

teus olhos mansos…






sexta-feira, 19 de março de 2010

Suspiro

Uma daquelas noites de sono tão profundo, em que mal dormimos surge a aurora.

O dia está lindo: claro e de céu azul. Sem calor nem frio. Uma maravilhosa brisa balança as copas das árvores que exalam um estranho perfume.

Caminho por entre o verde, e… Lá está ele!

Lindo! Como nada mais poderia ser. Comparável à pintura de Van Gogh. Sua camisa combinando com seus olhos… Sua calça folgada, quase um balão… Imagino que o fará levantar voo a qualquer instante.

Consigo balbuciar seu nome:

- Scott?!?!?

Ele abre-me um imenso sorriso:

- Very good to see you!

Meu corpo, em uníssono, estremece. Corro para junto… mais junto que dois corpos vestidos podem estar. Abraçamo-nos calorosamente. Seus longos braços, como dois feixes. Mil braços! Cobrem-me. Seu casulo me protege.

Permanecemos calados. O silêncio nos basta.

Esquecemos o mundo, o presente, passado, futuro…

Respiro fundo. Sorrio, choro…

Horas, dias, anos, bem paradinhos… Imóveis… A música de nossos corações e pulmões, além do calor de nossos corpos, é tudo que cabe nesse encontro.

Abro os olhos. Um bem-ti-vi canta bem na janela do meu quarto.

Eliane Velozo

Belo orizonte, 13 de março de 2010.


quarta-feira, 3 de março de 2010

Scott Johnsonn vai ao Recife



Parecia loucura encontrá-lo, mas após vários meses de mensagens em sites de relacionamento da rede mundial de computadores, chega-me a mensagem: estou vivo e posso ir ao Recife. Como saber se ele era ele mesmo?
Fiz uma pergunta “secreta”: o que disseste ao dono do Tejo Bar, em Lisboa, no primeiro momento em que o viste?
Ao que ele respondeu: Are you able to ask me in English? (Podes fazer a pergunta em inglês?)
Depois que formulei a pergunta na língua “matrix”, ele me respondeu com todas as letras, mas não posso revelar aqui.
Chegada ao Recife e hospedagem acertados, fui esperá-lo no aeroporto Gilberto Freyre. Levei-o para o hotel. Recomendei os itens indispensáveis ao café da manhã do dia seguinte: frutas, queijos, massas, e muito, muito líquido. Esta parte ajudei a solucionar, entregando-lhe um cantil que seria por ele carregado durante todo o dia seguinte.
– Try to sleep well, Scott, porque amanhã a barra vai ser pesada
– Ok, Ok, thanks.
Ele tentou me pedir informações sobre o que veria no outro dia, porém calada estava, calada permaneci. Achei que o elemento surpresa se não pirasse de vez meu convidado seria uma experiência inusitada. Ele, doido-de-pedra, como viveria o sábado?
Logo pela manhã, lá fomos nós, em direção ao local de saída do bloco.
Scott, sempre viveu em cidade pequena. Tinha experimentado o maior aglomerado humano num certo 4 de Julho, em que todas as cinco mil almas da sua cidade estavam festejando nas ruas.
Já na chegada ao Recife, havia tido uma surpresa:
– Amazing! Quanta mulher bonita! Elas perderam as roupas? Isso ele sabia falar sem sotaque.
E você ainda não viu nada! – explicava eu, em inglês.
Já às nove da manhã do sábado, o calor de rachar beirava os 35º C. Não havia uma única nuvem no céu apaziguando o sol.
Scott, quase sem roupa... Seu suor escorria mais que bica em dia de tempestade.
– Pôrra meu! What is that?
Suas palavras em bom português eram fruto de aulas com um brasileiro, entre o dia do convite e sua viagem.
– Estoouu impressionnaaddo!
Como se não bastasse seu físico esbelto e seus atraentes olhos, tinha cabelo espichado, destoando-o da fantástica mistura racial pernambucana, o que o tornava exótico e fazia lindas garotas, quase nuas, oferecerem-lhe beijinhos e abraços, coisa nunca vista por ele. Tímido que é, ficava vermelho como camarão assado.
– Elas querem make love with me?
– Não Scott, é só carnaval!
Essa era uma palavra que ele entendia sem entender. Não tinha a menor idéia do funcionamento de toda aquela loucura.
Vinte e cinco trios elétricos, sempre tocando frevos variados, passariam por nós, cada um com música mais rápida que outra... Ele que é aficionado à música erudita, não entendia muito bem aquela mecânica...
O frevo é uma música sentida mais facilmente pelo povo de Pernambuco, que não aguenta ouvi-la sem levantar os braços e tirar os dois pés do chão, de preferência tudo ao mesmo tempo.
Vimos também quatro orquestras de frevo, ali, no chão mesmo, tocando desesperadamente e uma multidão pulando como pipoca na panela, na frente, dos lados, atrás. Tudo deslumbrante. Ele mexia o bumbum para um lado e para outro, e quando aguentava o calor, levantava os braços e dizia “amazing!, isto é bom, I love it”.
Chegou a passar mal, porém foi acudido por cinco lindas loiras que lhe deram água gelada e beijinhos na boca.
Beijos que ele achou estranhos mas não falou nada, pois afinal, falava mesmo muito pouco. Nem sabia ele que eram todos homens vestidos de lindas loiras, de saias curtas e bocas vermelhas de batom.
A certa altura deitou-se no chão e falou:
– I am dying!
– Não, Scott, disso você não morre!
Ele sobreviveu, e somente desmaiou, horas depois, quando lhe falei que havia, no Galo da Madrugada, 1,5 milhão de foliões.
Desmaiou mesmo... e ressuscitou perguntando:
– Estou vivo? Dead? Isso é real?
Para dirimir suas dúvidas, eu e minha colorida sombrinha de frevo, resolvemos fazer aqui o registro desse dia único, imperdível, inominável.
Antes que eu esqueça, gostaria de ter misturado minhas gordurinhas aos ossos mal cobertos dele... Confundir ainda mais nossos enigmas... Porém era carnaval, a quarta-feira ingrata já já chegaria, e... Não deu tempo. Além disso nos perdemos e estou, novamente, à sua procura.

Eliane Velozo
Belo Horizonte, Brasil, 01 de março de 2010.