domingo, 27 de dezembro de 2009

Feliz 2010


Não incorrerei no mesmo erro duas vezes pedindo para aproveitar esses
feriados e se dedicar um pocochinho à nossa personagem. Vai parecer
trabalho. Portanto aproveite bem as festas que sejam boas. Aqui
acompanha um abraço do Mané desenhado pelo Antero Valério. E se quer
se divertir um pouco, vá ao anterozóide, blog do artista que tem-se
dedicado quase que exclusivamente à Ministra da Educação e que não
sabemos se terá um descanso agora com a mudança.
http://antero.wordpress.com/
E quando acabarem as festas já sabe. Mãos ao brinquedo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Um erro táctico

O acto de escrever pode ser visto como lazer ou como trabalho. Assim sendo, foi imprudência da organização propor que os interessados aproveitassem o período de férias para escrever. Era visto que poucos ou quase ninguém deixaria o seu lazer para escrever. Portanto, estendemos o prazo até ao fim do Inverno e assim, pode-se aproveitar o período lectivo e laboral para dar uma escapadinha nos afazeres.
Mãos à obra! Ou melhor: Mãos ao brinquedo!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

PRIMEIRA PUBLICAÇÃO



Primeira obra da nossa personagem que foi publicada este mês na colectânea Literatum & Poeticum, da Editora Guemanisse, em Teresópolis, Brasil. Aqui transcrevemos como está patente na página 201.










Scott Johnsonn





A publicação deste conto é a estreia mundial do autor.

Scott Johnsonn foi descoberto num bar de Lisboa. Trata-se de uma estranha personagem que só conhece o mundo através da literatura e só por ela consegue se expressar. Sua vida singular está a ser contada num romance escrito em criação colectiva numa experiência literária que engloba várias línguas e linguagens.

Para mais informação: manedocafe@gmail.com
















Round 3





A Negra

A campainha soou. Saiu da letargia com os olhos ainda fitos no ecrã que exibia, entre chuviscos e ondulações, os movimentos de sempre de mais um intervalo. E era só o que conseguia ver, pois quando se anunciava o ‘Segundos fora!’ mesmo que os olhos não cerrassem, abstinham-se do marasmo de tantos clinches e sonhavam com lutas de outrora, quando os socos não valiam tantos milhões e, muitas vezes à borla, eram distribuídos entre gingas, esquivas e passos de dança. Mais valia ter feito como costumava fazer: deixar-se ficar sentado a olhar o ringue e, aí sim, imaginar os combates de sonho sem a interferência da campainha e o cansaço dos chuviscos. Assim fazia cada vez mais amiúde e, se a imaginação falhava, havia o recurso à lembrança que, apesar da idade, era de fácil acesso pois ali vivera a maior parte da sua vida e ainda vive. E viveu momentos inesquecíveis.
Por ali chegou ainda rapazote na função de zelador. Com o passar do tempo foi acumulando muitas mais. Foi roupeiro, auxiliar de treinador, massagista, enfermeiro de urgência, técnico de manutenção dos aparelhos, só não foi treinador nem lutador, apesar de ter servido de sparring em algumas ocasiões, e fora também vigia noturno quando, por muitos anos, manteve o seu catre num canto esconso. Com o passar do tempo foi desacumulando as funções e hoje, já reformado, é o zelador.
As pancadas na porta suplantaram a mesmice do combate, o hipnótico chuvisco e o abanar exagerado das toalhas como se os contendores houvessem feito alguma coisa para suarem. Procurou andar mais depressa enquanto as pancadas insistiam. “Lá se foi mais um!” Na sua idade, notícias àquelas horas… “Já vai!” …só podiam ser más. “Na semana passada foi o Strudy, do armazém!” Antes do ‘quem é?’, olha pela viseira da porta. A pouca luz que a Câmara oferecia às ruas daquele bairro só deixava ver uma silhueta. A voz fez-se reconhecer e o seu coração bateu vida ao rever os flashes de quando aquele corpo parecia ser apenas silhueta a bailar como que sem o recheio de um peso pesado. O amolecido coração exultava de alegria, mas a voz não podia denunciar. Havia que ser dura para preservar a precária pensão. “Pegou-me no contra-pé! Já não tenho mais para emprestar! Aliás…”
- Velho maroto! – a sombra vira-se para a outra sombra – Viu como recebe um campeão?! Com cobrança! – torna ao velho - Eu não me esqueci… logo logo eu pago aquela guita!
- Quem está aí contigo? – prepara-se para passar uma reprimenda – Joe. Você sabe que não quero estranhos cá em casa!
A outra sombra projectou-se vagarosamente até à luz do cómodo.
Dois campeões era demais.
- Max!
- Reconhece-me! Como é possível!?
- Nunca esqueceria essa cara. Com essas sombracelhas… Entrem! – o anfitrião desfaz-se em apressados zelos – Tenho cá uma pinga… Não tenho Coca-cola não, Max… algures um queijo… sentem-se! …que ainda não mofou! Digam… Max, Joe; Joe, Max!!!
- Não queremos nada. Nem temos tempo para muito…
- Ele não pode perder o último comboio. Temos que andar depressa!
Se só o inusitado de estarem no seu quartinho seus dois maiores ídolos já quase lhe dava um badagaio, pior foi quando anunciaram a que vinham.
- Você tem a chave do ginásio?

Pelo caminho acordaram que o combate teria três rounds de três minutos por um de descanso. Ele entrega uma corda para cada um.
- Façam um bom aquecimento porque se a luta for morta, eu durmo.
- Pode dormir à vontade. Não o acordaremos. Batemos a porta ao sair.
- Dormir por dormir, preferia que fosse na minha poltroninha!
- Ele não pode dormir, não! Quem vai soar a campainha?!
- Tás a ver!? Façam como as raparigas. Já viram luta de raparigas? São animadíssimas!

Digeta-digeta… lept lept lept lept… digeta-digeta… tras tras tras… lept lept… tum – Aiiii…







Aquecimento

Parecia um sonho, estar ali a assistir a duas crianças a se prepararem para começar uma brincadeira sem nenhuma diferença entre elas e sem deixar que tanta igualdade atrapalhasse o intento. Sim, porque do alto dos seus oitenta anos, ele já sabia que o que se discrimina na diferença é o que de igual se repara no outro. Mas não era com filosofia que ele aguardava até que os dois estivessem preparados para a luta, era com história. A história que ele ajudou a escrever. Não que essa função fizesse parte das tantas que exercera para o clube. Não, essa ele a fez por conta própria, gastando muito do próprio bolso para poder presenciar os grandes momentos, comprar livros e fazer pesquisas e levantamentos históricos. Até aprendeu taquigrafia para não perder os depoimentos que, muitas vezes, eram mais interessantes que o próprio evento e assim, escrever para o mural do ginásio um pouco da história do boxe. Como aqueles dois já envelhecidos atletas que tanta tinta fizeram correr nos dois lados do mundo, o de dentro e o de fora. Escreveram com sangue, suor e lágrimas numa altura em que o de dentro não tinha a aceitação de todos, enquanto que o de fora era tido como o salvador da pátria branca, pois branca era a Revolução Industrial que aportou na América acabando com a Escravatura mas não com a escravidão de homens, mulheres e crianças de qualquer cor que se lhes atribuísse. E, quando as máquinas se multiplicaram fordianamente em corporações mastigando e minguando a individualidade e a auto-suficiência do homem da classe média, fazendo com que se procurasse a afirmação nos esportes viris, o boxe serviu como uma luva para espelhar a supremacia do macho dominante nacionalista branco.
Enquanto ele ouvia os embaladores ruídos dos aparelhos, a sua mente era levada para um tempo tão longe, mas tão longe, que parecia ontem. Tempo em que o campeão John L. Sullivan afirmava, de boca cheia, que não lutava com os ‘niggers’ e Jim Jeffries sustentava, de pés juntos, que quando não houvesse mais branco para lutar ele deixaria o boxe para não dar oportunidade de perder o campeonato para um negro. Um tempo em que quando o campeão mundial passou a ser um canadiano ninguém se lastimou tanto quanto quando o título atravessou novamente a fronteira e foi para as mãos de um negro fazendo com que os brancos se mobilizassem rapidamente, apelando para tudo, até que conseguiram fazer com que o Jim Jeffries voltasse a lutar para lavar a alma da branquitude. Caramba! Até o Jack London, escritor de quem ele tanto gostava, andou dizendo que lamentava pois, afinal de contas, o outro era branco. Até deixou de ler os romances desse escritor. Por um tempo ainda conjecturou. “Se fosse ao contrário eu, com certeza, torceria para o canadiano.” Mas… porém… contudo… todavia… “se a questão era de afirmação… e a raça branca queria afirmar a sua supremacia conquistada com armas, subterfúgios, intrigas, religião, tratados rompidos e palavras quebradas… assim, nós queríamos afirmar a igualdade.” Como quando o índio Pés Ligeiros ganhou as medalhas olímpicas e apesar de lhas tirarem… Bah! Isso já cheirava a ranço. Voltou a ler Jack London. Os negros bem precisavam de uma grande reviravolta para além de terem um campeão. Assim como uns os viam sem alma, outros os viam como idiotas, como a vice presidente do Clube das Mulheres da Califórnia que disse que povo negro é uma raça infantil, que precisa de direcção, instrução e encorajamento e a raça superior nega aos negros todas essas coisas quando os levam enganosamente a acreditar que um campeão negro seja significativo para a raça. Isso para justificar a proibição da exibição do filme em que mostrava a malograda tentativa do reactivado Jim Jeffries recolocar o negro no seu devido lugar. Meu Deus, que luta! A grande esperança branca foi feita de bobo por Johnson que durante 14 rounds, zombou, troçou e riu do oponente para derrotá-lo no 15º assalto chocando a maioria das 90 milhões de atenções que se voltavam para Reno e nocauteando também o senador de Nova Yorque. Ele não lembra direito do nome do senador, “Tim…” não sabe o quê que, ao se recuperar do desmaio, exprimiu a frustração e decepção da população branca que reagiu violentamente contra os negros por todo o país. Ah, mas como ele se lembra bem do campeão Jack Johnson. Campeão dos pretos, claro. “Pretinho sem-vergonha!” Debochava dos brancos dentro e fora das cordas. Até namorava mulheres brancas publicamente e dava a elas presentes e dinheiro. Foi aí que tramaram o campeão. Ele nem quis acreditar quando soube da sua prisão só porque passou uma fronteira estadual com uma namorada e foi acusado de violar o Mann Act, uma lei criada para combater a escravidão e a prostituição branca. Mas o que queriam mesmo era verem-se livres dele tanto que as mesmas autoridades que o prenderam estimularam-no a fugir dos Estados Unidos. Johnson passou a ser o campeão exilado até perder o título mundial para Jess Willard, em Havana. “Lá em Cuba!”
- Vai uma aguinha?
- Não. Para não arrefecer.
- Uma massagem até que vai bem!
- Já estou velho pra isso. Vão ter que fazer um no outro.
Ele imaginava que, das duas uma, ou seria um festival de risada ou uma grande seca aqueles três assaltos. Não se importava, pois o que os olhos vissem não apagariam as lembranças das duas primeiras e únicas lutas dos seus dois ídolos. Assim como os gemidos nos alongamentos dos dois enferrujados não atrapalharam a visão da luta do primeiro campeão negro com o ‘representante eleito’… como disse o sacana do Jack London.

Round 1

Levou os dois ao centro do ringue e pediu que no intervalo, os dois se dirigissem para o mesmo corner, a fim de lhe facilitarem o atendimento na única tarefa que lhe cabia nesse embate sem árbitro, para além de fazer soar a campainha.
Posicionou os dois banquinhos, a toalha, o balde, o estojo e soou a campainha.
Ele repara que o Max ainda mantém um porte atlético e pensa “É o que faz o dinheiro!” e lembra de quando o lutador alemão desceu do navio debaixo de uma ovação que parecia que a multidão estava ali para receber um herói do Olimpo. Mas era só esperança, pois que ninguém acreditava que o estrangeiro pudesse ganhar. Hitler tinha esperança. Quase todos os Estados Unidos esperavam. Mas nem os críticos, nem os cientistas do boxe por mais que esperassem e até apostassem, não acreditavam numa vitória de Max Schmeling, o salvador que veio de longe. Nem os pretos, sobre quem a esperança fez morada, acreditavam que um branco vindo das estranjas pudesse abalar a carreira daquele que despontava como um dos maiores pugilistas até então e que tinha tudo para ser mais um campeão negro, duas décadas depois de Jack Johnson. Ele também estava lá. Mas apenas para fazer a cobertura do acontecimento que até ao início do combate ele tinha como favas contadas.
O resultado final não foi surpresa para ele. Depois de dois minutos de luta ele percebeu que o danado do alemão conhecia o caminho para a vitória. “Acho que ele era a única pessoa sobre a terra que sabia que podia ganhar, que depois de uma série de golpes Joe Louis abaixava o punho esquerdo. O sacana descobriu isso logo logo!” Quando Joe foi à lona pela primeira vez, o Yankee Stadium começou a vibrar com o impensável e no 12º round, até quem tinha perdido dinheiro, ficou alucinado e o visitante não entendeu nada quando viu serem disputados como souvenir até pedaços das suas ataduras. Mais que herói, o ‘elegante, inteligente e bonito’, virou um deus. O alívio não foi só para os americanos que temiam a eminência de terem mais um campeão peso pesado que não fosse branco. Também Hitler ficou tão contente que fez vista grossa pelo facto de Max não querer se filiar ao partido e obrigou que se projectasse o filme da luta em toda a Alemanha.

Intervalo

Ele passa a toalha na cara dos dois, que nem ficaram muito magoadas e vai lembrando da tristeza que foi ver o seu ídolo beijar a lona. Mas isso não impediu que Joe continuasse a sua trajectória até ao cinturão, o que aconteceu um ano depois contra o Cinderela Man. “Eu até gostava daquele branquelo. Um branco com alma preta! Eh eh!”

Round 2

“É! Mas o Hitler meteu os pés pelas mãos!” Pensava ele sem ligar muito aos dois sobre o tablado. “Começou a querer saber a cor das almas de toda a gente.” E quando o Max veio para novo combate, a multidão que o esperava, estava lá para achincalhar o rapaz e xingar o desafiante do campeão, de nazista para baixo. “Até ‘filho da puta’ eu escutei.” Mas ele não estava lá para isso, ainda mais porque, lá no fundo nutria uma certa admiração pelo lutador alemão. A mesma que nutria pelos grandes atletas. Agora, era o preto que subia ao ringue com a missão de salvar a Pátria. O próprio presidente, pessoalmente, endossou a querença de todo o povo americano.
Os dois pesos pesados começam a atrair a sua atenção. “Como pode uma coisa dessas!?…” Os contendores ganharam peso mas não perderam a destreza. Passou a apreciar melhor o combate deixando as lembranças para trás. Também, não havia muito que lembrar. A revanche durou apenas 124 segundos. E Joe Louis completou a tarefa que Jessie Owen e outros atletas negros iniciaram na Olimpíada de Berlin, ao fazerem o Fuhrer dizer que ia cagar e sair do estádio. “Fiquei com pena do Max. Se bem que acho que ele… Deus me livre de pensar uma coisa dessas! Mas acho que ele se deixou bater, só para sacanear o Hitler.”

Intervalo

Merecem um tratamento especial pelo que fizeram. Havia que ser rápido pois ambos sangravam muito. “Supercílios!” A toalha era uma só. Mas esses dois há muito já combinaram o sangue e os odores. “Podem dizer que são irmãos de sangue.” As lágrimas choraram-nas cada qual para o seu canto. Joe Louis, apesar de comportado e de contribuir para o esforço de guerra doando algum cachet. “Mesmo assim foi tramado!” Pelo Estado, pela vida e pelas coisas que têm. Cocaína, traições, doenças, ladroagem, Fisco e memória curta. Quanto ao Max, o chefe supremo dos nazistas fez-lhe vida… negra, o que levou a sua família à miséria.

Round 3

Mal começou, os curativos cederam. Mas o sangue não impediu que se degladiassem acirradamente. Os pensamentos lhe vinham em turbilhão. A Coca-cola depois da guerra recrutou o Max para garoto propaganda e ele via um subir enquanto o outro descia cada vez mais. Ele não acreditava no que os jornalistas diziam... que os dois não se gramavam e até que se odiavam. Não. Eram só dois atletas que cumpriam as suas missões que não tinham nada a ver com nada daquilo. Tinha a ver com outra coisa que poucos têm o dom de conhecer. Ah, como foi bonito saber que o amigo que se aprumou na vida foi visitar o carenciado. “Eu não disse!?” E foi mais de uma vez. Visitava e ajudava. Na calada, mandava dinheiro… “e aposto que se o amigo indigente morrer primeiro o outro não o deixará ir para a cova rasa.” Ele nunca vira uma amizade assim.
Pensa em atirar a toalha e declarar um empate técnico. Mas ele não estava ali como juiz. Os dois podiam não aceitar ou talvez nem reparassem no sinal de tão renhida que estava a luta. Ele desiste da ideia de parar o combate. Desiste das lembranças. E fica só com o seu pensamento. “Eu assisti ao maior espectáculo da vida! Já posso morrer!”
Os dois amigos começam a cansar e a luta parece estar muito arrastada, demorada… a campainha não soou.

Fim


Referência:
Joe Louis vs. Max Schmeling and the new ideology of racial democracy in the USA, de Jessica Grahan

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Clarinetes e lendas

O som ímpar de um clarinete em terras árabes


Ao ver a placa Johnsonn abrandou o carro: Cacela-Velha. Era aqui que lhe tinham dito para virar. Estava desconfiado; além de Vila Real, que tinha um centro realmente bonito, só lhe tinham mostrado aldeamentos: aldeias novas “para inglês ver”. Ora, Johnsonn não era inglês e não queria ver casas com motivos estilizados nem arranha-céus em avenidas junto ao mar.
Ao aproximar-se do pequeno aglomerado caiado parou o carro e desceu. Havia duas ruas. Decidiu seguir a direito e foi dar a um largo com uma igreja, por detrás da qual se via um forte. Em frente havia apenas o mar, estava no alto de uma muralha sobre um braço de mar que formava uma península — o fim da Ria Formosa.
Uma suave, mas fresca maresia não o deixou deter-se muito tempo. Virou-se de novo para terra e decidiu explorar o largo à direita e as ruelas de nome árabe, homenagem recente aos poetas da terra (e quem, vivendo em Cacela não se tornaria poeta?), ouviu ao longe um clarinete. Naquele cenário nunca imaginou ouvir tal som e no entanto os harmónicos ímpares têm um timbre inconfundível.
Através de uma janela aberta ouvia-se alguém que ensaiava. Johnsonn não resistiu a bater à porta, aquele som familiar trazia-lhe saudades do avô; e curiosamente, este clarinetista tirava do clarinete em si bemol um timbre muito semelhante ao do velho Johannes. Johnsonn não sabia muito de música, apenas o suficiente para saber que o som de cada instrumentista é único, feito de uma cumplicidade construída ao longo de muitos anos com o seu instrumento.
À janela veio um homem louro, alto, de meia idade. Com pronúncia acentuada, perguntou-lhe quem era. Johnsonn respondeu-lhe em inglês que não falava português. Postos de acordo sobre a língua, um com sotaque britânico e o outro norte-americano, Johnsonn contou-lhe que reconhecera a sonoridade característica do seu avô Johannes. O homem apresentou-se: “Alastair Tilley, fui aluno e colega do seu avô. Se reconheceu o som dele na minha forma de tocar, então é o maior elogio que alguma vez me fizeram!”
Alastair convidou Scott a entrar e ofereceu-lhe um chá fresco. Contou-lhe que tocara em Nova Iorque, na Filarmónica e de como depois dos concertos percorria os bares de jazz da cidade com Johannes. Lembrava-se de Scott pequenino quando aparecia nos ensaios pela mão do avô. Depois da reforma Alastair instalou-se em Cacela, onde se ouvia o mar, o vento, as cigarras, os grilos, as andorinhas — em noites de lua cheia o choro das mouras encantadas presas no poço do castelo — e agora os clarinetes. Ficaram toda a noite a relembrar velhas histórias de Nova Iorque. No dia seguinte Scott tinha previsto ir a Tavira, de cuja beleza ouvira maravilhas.

Acordaram tarde. Meteram-se na velha carrinha de Alastair e rumaram à cidade. Ainda em jejum subiram a colina em direcção ao castelo. Depararam-se a meio do percurso com o Museu, onde a sombra do pátio interior convidava ao almoço. Atravessaram o patamar sobre os poços fenícios cobertos com vidros e nem quiseram pensar que rituais teriam ali sido praticados.
Enquanto se deliciavam a conversa fluía novamente. Quem seriam estes fenícios e como seria bela a Tavira de então. Um povoado à beira rio, o mar ao largo, suave e quieto, entre ilhas, dunas e canais. Só do outro lado da ria havia ondas e correntes fortes. Atravessados os areais, a serra ao longe, um rio largo, peixe em abundância e terras férteis. Uma colina como um varandim sobre a paisagem (e sobre quem tentasse aproximar-se). Em suma, o Paraíso!

Continuaram depois a subida. Do castelo-jardim vê-se tudo em redor. Ao perto dezenas de igrejas e pontiagudas quatro-águas em contraste com as paredes alvas. Mesmo em baixo o jardim à beira do Gilão, entre o mercado e a Câmara Municipal.
Encavalitado na muralha mesmo por cima da igreja de Santiago, Alastair abriu o estojo do clarinete baixo e começou a montá-lo, peça por peça. Ali do alto, com a ressonância das muralhas em redor, os graves cantavam docemente. O som quente envolvia o jogo das crianças no jardim e o ruído dos carros deixou de se ouvir.
Começou por Beethoven, para a amada... ao longe..., o clarinete era um jovem cheio de saudades, amado e apaixonado, num lamento murmurado e doce.
Depois animaram-se. Se as saudades apertam, o ondulado do chorinho tira-lhes o peso. Ao som do exotismo brasileiro, de melodias volteadas e contra-tempos sensuais, um véu azul esvoaçou sobre ambos. Do alto da torre uma sombra de mulher ondulava, visível mas transparente...
Alastair parou de tocar e subiram à torre. Deram a volta até à escada tortuosa de tão pisada, mas como em todas as histórias de mouras encantadas, encontraram apenas o véu e um leve odor a laranjeira e almíscar. Dali avista-se Espanha, o Califado de Córdova. Mais longe, do outro lado do mar, a terra longínqua dos seus antepassados. Sempre que podia ela voltava para olhar o magnífico espectáculo e estas gentes louras que agora apareciam, como gostaria de falar-lhes...

A tarde passou-se entre vielas, ruínas, palácios soterrados, igrejas e mais igrejas... “Muitas igrejas há nesta cidade!” disse Scott. “Parece aqui perdida no reino dos Algarves, mas deve ter sido um centro religioso de importância.” “Seriam algumas mesquitas convertidas”, respondeu Alastair. “Na realidade toda essa cultura foi esquecida até há pouco tempo — só agora se estudam com afinco esses poetas e a riquíssima cultura que essas gentes trouxeram. O povo, claro, sabia-o nas suas alpergatas ou nos albericoques do estio. O povo sabe sempre mais do que quem vê o mundo pela janela do palácio.”

Scott sabia que no dia seguinte partiria de regresso a Nova Iorque. Tinha passado o dia com o avô, mais perto do que alguma vez se sentira desde a sua morte e tinha encontrado em Alastair um amigo.

Quando a luz se tornou alaranjada nas fachadas desceram à praça do Al-Mashrad, o teatro. Não resistiram a entrar na pequena livraria. Pela travessa passaram ao mercado, onde jantaram junto ao rio.
Mais uma vez vieram à baila as orquestras e os bares nas caves nova-iorquinas. O maestro que melava tudo, até Mozart: “always legato”... Um outro, já meio surdo, que nem reparava se a orquestra não estava toda junta. Ah! Mas quando vinham os mestres dirigir, que delicia! Que maravilha suprema... fosse qual fosse o programa...
Depois dos concertos fugiam para as catacumbas do jazz. Uma nota ao lado, um engano e quantas vezes nascia daí nova moda. A risota e a pura diversão, o prazer de tocar com os amigos, a genuína partilha sem direcção nem partitura.

O restaurante fechou e a conversa parecia não terminar. Continuaram sob a lua sentados num banco da ponte romana, a meio do Gilão a olhar Tavira adormecida.
Manhã clara, de volta a Cacela, Scott pegou no seu carro e tomou a direcção do barlavento rumo ao aeroporto. Do avião viu as dunas e as cidades brancas do velho Al-Gharb, sentia-se confortado como uma criança e adormeceu. Desde que o avô morrera não pensara poder voltar a sentir-se tão próximo.

(Helena Romão)

domingo, 13 de setembro de 2009

A cabeça de Scott Johnsonn em Lisboa

Estava num quarto logo ali à Rua das Portas de Santo Antão. Não chegou a fixar o nome da residência. Deixou as malas por abrir. Não continham nada de pressa nenhuma os gestos com que olhou o espelho e alisou o cabelo com os dedos e um pouco de água. “tenho de ir ao barbeiro. será que há um barbeiro aqui. vou perguntar na recepção. eu gosto de patilhas. a minha avó também gostava de patilhas. como eu.”

Coisas rudes e coisas sublimes afluíam-lhe indiscriminadamente ao cérebro. Os pensamentos voavam sonoros, shhhhhhh, vuuuuuu, chuááááá, como nos filmes de acção. “eu. eu não sou eu nenhum. apenas uma pessoa a mais nas rotinas das ruas velhas da cidade. não faço falta. ninguém me espera. ninguém espera ninguém… o fado… a saudade… não, ninguém espera ninguém… somos sempre sós.”

Eram pensamentos filosóficos, apocalípticos… “Está deprimido”, disse o médico que primeiro foi obrigado, em consulta, a dar opinião sobre algo de que não percebia nada. É comum. Depois as classificações foram-se tornando mais difíceis de pronunciar e de decifrar, ao nível da especialidade: maníaco-depressivo, bipolar, esquizofrénico, psicótico… de tudo se ouviu. Ele continuava a apertar a cabeça entre as mãos. E a escrever.

“não me vejo a andar nas ruas. só as ruas andam sobre mim como uma projecção no espaço. o espaço cheio de ar, cheira a nada e a enxofre. não sei porquê, enxofre. deve ser do carvão e do petróleo que, em combustão, movimentam as pessoas e assam sardinhas na grelha. um analista havia de pensar: enxofre-chamas; chamas-inferno; inferno-culpa; culpa-expiação… e lá estaria eu, de calções curtos, no centro de todo o trauma, um rapaz-problema… se ao menos eles pudessem sentir o imbróglio que é ser eu.”

Pensou muito depressa coisas muito cansativas - fiuuuuuuuuu - e aterrou no pensamento que haveria de se tornar tema e lema e depois dilema: “melhor era não pensar”. Tentou meditar. Já muita gente bem intencionada o havia querido ensinar a meditar… a deixar fluir, só fluir. Não dava! Cada vez mais ágeis as vozes do pensamento abafavam todos os sentidos. Como ele sofria com o pensamento. Como se debatia com a autonomia dele. “não pensar, isso é que era…”

Desceu os quatro lances de escada rangente até à rua. Voltou a sentir aquela impressão holográfica da realidade ou de si próprio. Por várias vezes chocou com quem dele se não desviava a tempo por distracção ou fé. Sentia-se flutuar num campo cinético desadequado. Era como se o turbilhão de pensamentos o impedisse de se conectar realmente com o mundo. Zzzzuummmm. “penso, logo existo. que estupidez René… o pensamento tomou conta de mim e eu morreu.”

Quando não escrevia tinha sempre aquela dor no cérebro. Se escrevia era como se a torrente mental se acalmasse no papel e não chegasse a pertencer-lhe, não chegasse a poder pertencer-lhe. O pior era quando as elucubrações já vinham numa tal forma literária, às vezes poética, que faziam doer a mente e o coração ao mesmo tempo e, se ele as não podia verter na folha, chegava a ter espasmos torácicos que eram autênticos ataques cardíacos… A psiquiatria chamava-lhe somatização.

Em miúdo o avô levou-o à ópera. Era uma história muito triste, muito triste. Uma paixão destrutiva como tantas. Uma mulher que esperava ver um navio a crescer para o porto. Un bel dì vedremo. Por fim, quando a esperança se transformou em ácida solução de mágoa, ela abraçou o filho, afagou a lâmina, cantou a ária e con onor muore. Não era uma coisa para crianças, tanta dor.

Vummmmm, zzzzeeeeeee. “não era uma coisa para crianças, tanta dor.” Quando agora pensava naquela Obra, o que mais ressaía não era exactamente a história. “pobre miúdo, ali, no centro do palco, quatro anos. apertado, abanado, sufocado… ridículo. o que iria na cabeça daquela criança repetidamente levada à intimidade dos seios trementes de uma mulher que lhe gritava ao ouvido palavras como arpões, incompreensíveis e ensurdecedoramente encarnadas de batom. coitado… e va, gioca, gioca…”

Naquele dia não teve que lutar com o pensamento. O teatro grandioso, os cenários, os adereços, as vozes, a música, o drama, o movimento… Foi das poucas vezes que conseguiu acalmar aquele bicho. No entanto foi um alívio passageiro, pois a ópera, nos seus três actos, passou a ser uma temática recorrente dos seus concorrentes pensamentos.

Quando desceu as escadas dirigiu-se à primeira pessoa que encontrou e disse, com os olhos muito abertos e articulando as palavras como um surdo: “- Eu querer ir Ópera”, enquanto fazia com os braços o desenho de um edifício enorme e, para se perceber a dimensão, inflava as bochechas. Também falava alto, claro, porque é assim mesmo e porque aquelas pessoas estavam na tal dimensão holográfica, costuradas entre dois feixes, luz e laser e puf… É preciso não esquecer isso.

As pessoas eram muito simpáticas e procuravam ajudar e ensinavam: “Como-vou-para-a-Ópera?” Ele percebia o que lia e o que ouvia, mas falar… Era muito difícil para ele o português, o de Portugal mais que o brasileiro. As vogais fechadas eram muito penosas de pronunciar e ele tinha vergonha de quebrar aquele sigilo que a língua portuguesa encerra… uma espécie de não dito dentro de cada palavra… “- comô vau Ôpera? não, não. - cômô vó pra Opera?”

De esquina em esquina, perguntando sempre e obtendo sempre a hospitaleira atitude lusitana de namorar os estrangeiros, chegou à frente do teatro de ópera com uma fórmula muito diplomática num português bastante aceitável: “- Por favor, como vou para a Ópera?” Mas não havia nenhuma ópera em cartaz. Nada. Dali a três meses estreava “O Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner.

Götterdämmerung, Der Ring des Nibelungen. o avô adorava Wagner. e agora? vou ao Tejo bar? mas ainda é cedo, o Francisco disse que antes das 10 da noite não valia a pena ir…” Rodou sobre si mesmo 180º e “ah, Fernando Pessoa?” Atravessou a praça do S. Carlos com os olhos em alvo até conseguir decifrar toda a placa. Leu em voz alta: “No 4º andar desta casa nasceu em 13 de Junho de 1888 o poeta Fernando Pessoa”. Para além disso havia uma estátua de um homem com um livro no lugar da cabeça. Deu-lhe a volta três vezes de boca aberta. “Pessoa. Fernando Pessoa nasceu aqui, em frente à Ópera. devia ser assim que apaziguava o espírito… que feliz que eu estou de estar aqui… que feliz que eu sou.”

Não era bem assim, mas o que é que isso interessa? Ele não sabia que Pessoa só ali vivera até aos cinco anos; também não consta que fosse um amante de Ópera e é pouco provável que alguma vez tenha assistido a uma enquanto ali viveu. E, por outro lado, Scott não era feliz.

Começou a caminhar sorridente. Não conseguiu ir à ópera, mas conseguiu concentrar-se em pensamentos muito simples de mero reconhecimento das coisas. Pessoa também ajudava… vieram-lhe à cabeça muitos excertos que lhe ocupavam totalmente o cérebro e o impediam de se perder nos seus caóticos pensamentos. Subiu para a rua António Maria Cardoso (embora ele não soubesse). Anoitecia.

“para onde vão aquelas pessoas todas. é um clube? um cinema? vou saber.”
Era o Teatro S. Luiz. E a causa do humano movimento era o ensaio geral de uma peça de teatro[1]. Por ser estrangeiro e até falar um pouco de português e por ser estrangeiro (já falámos sobre isso) lá o deixaram entrar. “- Segundo balcão, por favor.”

“lindo, lindo. que teatro bonito. oh…” Era um musical. Feito por gente muito jovem, irreverentes, excessivos. Estava fascinado com a electricidade musical e a qualidade vocal dos actores. Falado em português, alemão e inglês, o texto era, só por isso e para ele, uma ocupação a tempo inteiro. Sorria. A música era espantosa e comandava. Também tinha projecções, numa enorme tela que ocupava todo o fundo do palco. “muito bom, muito bom”. Mas o mais surpreendente dos elementos cenográficos era o fosso onde estavam os crocodilos. A separar a cena da plateia, uma piscina, onde três actores nadavam durante todo o espectáculo. Os personagens iam caindo ao fosso na evolução nonsense da narrativa.

Tzzzuuuuuuuu. zzziiiggggg. “o avô teria gostado da música, dos músicos. o teatro é belíssimo. de que ano será? os crocodilos estão sempre lá, pacientes. mas se não forem eles serão os nervosos tigres… a pianista é óptima e canta como uma possuída, afinadíssima. um certo romantismo juvenil trespassa toda a tecnologia do espectáculo… que horas são? quase 11… o candelabro é majestoso…” Foi quando os seus olhos desciam do lustroso lustre para o palco que a viram. A luz aumentou um pouco e ele pode ler a frase que encimava a boca de cena: Fazei mais o que souberdes. Camões.

Por um momento o mundo voltou a parecer projectado a partir de uma gravação num painel verde de croma key. Shuammmmmm. “incrível. incrível. aquilo não é dos Lusíadas[2]. esse conheço eu de fio a pavio. Pessoa e agora Camões... há quem diga que era melhor que Pessoa. eu não acho que se deva comparar caldo verde com sopa de feijão. eu gosto das duas. não gosto é de canja... mas nós, prováveis bipolares, somos família. Camões é pai, ninguém questiona. que maravilha. Fazei mais o que souberdes…” E escreveu em inglês num pequeno papel: do more what you do better.

A peça terminou. Saiu. “o que é que eu sei fazer? pensar? escrever? É a mesma coisa, a mesma coisa… Camões diz-me para escrever mais. é o que ele me diz. é o que eu vou fazer. talvez pensar como o Pessoa e escrever como o Camões. talvez regressar a Nova Iorque a nado, com os meus escritos como vela”.

Sorriu à folclórica imagem. Na manhã seguinte teria de ir arrolar o seu acervo literário, como lhe chamava o amigo Francisco que o havia feito jurar que iria à Inspecção-geral das Actividades Económicas, nos Restauradores, registar as suas papeladas. Ele preparara tudo: uma enorme mala com dois exemplares de cada texto para ali ficarem arquivados e ainda um requerimento de registo por cada um, já devidamente preenchidos, que ele foi buscar à Internet. Não podia desapontá-lo. “amanhã logo de manhã vou entregar os papéis do Francisco… quer dizer, os meus… senão ele… eu nem sei…” Para além da mala grande tinha trazido uma segunda. Essa escapara ao controlo do Francisco. Tinha dentro cinco camisas, um blusão, uns sapatos ligeiros e alguma roupa interior. Como sobrava muito espaço, colocou lá dentro todos os originais das suas obras. Uma decisão desastrosa. Ou não…

Já era tarde para ir ao Tejo Bar (mal ele sabia que o Tejo não dorme). Andou um pouco e deixou-se apanhar por um táxi, nem mais nem menos que no Largo de Camões. “Parra Ruá da Porrtass de Saunto Então”. O taxista sorriu, não disse nada durante o curto trajecto e cobrou-lhe o triplo do valor da corrida (também há namoros cruéis).

Nunca chegou a saber quem era a figura que rompia o vento no centro daquela praça inclinada. Também não soube que, ali mesmo no Chiado, Pessoa pousava a sua chávena de café e lançava um olhar cúmplice a Camões. Ambas as brônzeas criaturas haviam notado aquele sujeito ínvio.
Tampouco visitou, mesmo ao lado da pensão, o túnel que dava acesso à Cadeia do Tronco, onde Camões esteve preso, por se envolver em refregas de mancebos, e depois desterrado por dezasseis anos que haveriam de se corporizar nos Lusíadas e em tanta poesia.

Mas não faz mal, é tudo parte de uma imensa harmonia que se gerou naquela noite. Nem sempre consciencializada. E ainda bem.


[1] Teatro Praga no ensaio geral do espectáculo “Demo”.
[2] Farsa El-rei Seleuco (Camões, 1587) “Moça: Por certo que tendes graça / Em tudo quanto fizerdes. / Fazei mais o que souberdes.”

(Isabel F.)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Lapsus - um atrás do outro



Meio as coisas abandonadas pelo Scott Johnsonn, encontrou-se um exemplar do As mulheres do meu pai, de José Eduardo Agualusa, na versão inglesa "My father's wives". Um cliente chamou a atenção para uma nota a lápis que faz uma observação de ordem cronológica.




Desculpe lá, Scott Johnsonn, mas você também cometeu um lapso. Não foi "later". Nessa luta, o Joe Louis manteve o título que conquistara em 1937 em luta com o Cinderella Man. Mania...

(Jorge Dias)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Encontro

Em visita a um amigo de Portalegre, encontrei entre as páginas de um livro uma folha manuscrita bastante maltratada. Em resposta às minhas perguntas intrigadas, meu amigo explicou-me que obtivera esse livro através do bookcrossing e que esse texto já vinha lá dentro. Bookcrossing, estilo jamesiano, conteúdo condizente com o tema do seu último romance (inédito) – penso que há probabilidades de se tratar de um pedaço de texto de Scott Johnsonn. Aqui vai:






(O que) o espantou durante o encontro foi que algumas das palavras por ambos proferidas possuíam uma tonalidade mais própria de quem trava conhecimento do que de quem se reencontra, embora houvesse por instantes curtas alusões a acontecimentos do passado. Em redor, as pessoas em grupos reagiam às obras expostas numa espécie de coro extático a que apenas eles se furtavam, entretecendo (num canto mais resguardado) uma nova (tapeçaria, aparentemente) esquecidos da tragédia antiga que os separara. O som das vozes, o ruido dos passos interferia na doçura da conversa fazendo-os retirar para o jardim da galeria. Mas lá fora, uma inesperada timidez surgiu que os fez despedirem-se após alguns minutos, trocando contactos com promessas de se verem de novo muito em breve. Ambos sabiam, todavia, que provavelmente (não) iriam voltar a ver-se, temendo cada um deles (que a) sombra do passado, esplendorosa (que fora), se transformasse num triste (fantasma).
Gouma Ezran

domingo, 2 de agosto de 2009

Testemunho

Scott Johnsonn?!
Creio que um dia o vislumbrei
nas Alminhas, lá ao fim da tarde
conversando com o Duque da Ribeira...
certezas não tenho, mas eu sei
àquela hora, que o sol já pouco arde
é que o tempo pára e s' espreguiça
dum dia de trabalho e da liça
e s'entrega ao sossego, Douro à beira...
nessa hora de paz, o rio é manso
e faz daquele canto o remanso
nas luzes que acendem na Cidade;
nessa hora de Poetas e de Estrelas
eu vi-os, aos dois, a acendê-las
rindo e conversando, ao fim da tarde!...
Maria Mamede
2/Agosto/09

sábado, 1 de agosto de 2009

(...)

...falaram-lhe para vender as folhas ao Rodrigues Vaz. entretanto, algúem achou que não seria boa ideia, porque só receberia depois da obra editada, se houvesse patrocinador para tal - o que levaria anos a acontecer correndo o risco de nunca saber se aconteceu - que nestas coisas o editor em causa é muito esquecido por excesso de preocupações.
Nunca iremos saber qual seria o fim, mas deixar que algumas das belas folhas se perdessem ao fim de tantos anos e tantas viagens, frustra. Fica a esperança em
que alguém - de boa fé - as tenha visto (ou encontrado) e as tenha feito editar nem que assinadas por si, a bem do património lliterário mundial

Luis aires

Sobre o avô

Até que não seria muito difícil abordar a estória. Se bem que não fosse inédito, era de certeza uma bela e anafada matéria-prima.
Como enquadrá-lo?
Alemão descontente, mas não dissidente…
Existencialista? Não consta que tivesse aderido à Resistência…
Com enorme potencial de anarquismo, não consta que tivesse patente registada…
Boémio?..talvez…mas com pouca ou sem consistência intelectual – um músico menor com faculdades de abrilhantar verdadeiros artistas…

Sartre, levantou-se, despediu-se (a estória era, sem dúvida, sedutora mas não iria comprometer o seu estilo literário) pediu para o levarem de volta e lá ficou até que a 2ª Guerra lhe desse notabilidade, status e algum pilim…

Luis Aires

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Sem título

Scott Johnssonn. Mais parece nome de sueco, que eles é que dobram os ennes, à brava. Mas não sei se é o mesmo fulano que encontrei por breve período no metro de Paris. Eu costumava passar regularmente na Bastille a deleitar-me por algum tempo com a música do Damian, um americano, que ali tocava o seu contrabaixo todos os dias entre as 3 e as 6 da tarde, o que lhe permitia treinar e ganhar algum ao mesmo tempo. O Damian era razoavelmente conhecido como músico do outro lado do Atlântico, mas vivia agora em Paris, desconhecido e quase pobre (tocava 2 vezes por semana num barzeco de mais ou menos jazz ali ao pé das Halles), numa chambre de bonne do 17ème.
Uma tarde dou com ele acompanhado por um branquelo – era o Scott Johnssonn--cantando velhos blues, e o conjunto fazia arrepiar a pele todinha até dos franceses mais renitentes. Durante uma semana, foi assim: um tocava, o outro cantava, o pessoal juntava-se e não despegava, entabulavam-se conversas, relações, flirts, paixões, e só desandavam dali quando o Damian dizia: that’s all, folks. Isto depois do Scott cantar “Dry your eyes” (se querem explicações, peçam) -- dizia ele que era “a melhor coisinha que o Neil Diamond escreveu”.
Primeiro pensei que o Scott era cantor, mas logo me desenganou. “Eu sou mesmo é escritor. Cantar é um gosto secreto que apenas exerço quando estou longe de mim.” Não me perguntem o que isso significa, também não sei, ele não explicou, acho que era uma frase de escritor.
Durante essa semana quando saíamos do metro, íamos comer num africano meio escondido ali para os lados de Guy Môquet e por lá ficávamos até tardias horas entre música e histórias de todo o mundo, assim um bocado como no Tejo Bar. E foi numa dessas noites que o Johnssonn nos fez um relato, afirmou ele que palavra por palavra o que lhe fora contado em herero, mas eu cá por mim acho que ele é que escritou (não tenho mesmo jeito nenhum, aqui precisava do Mia Couto para ele inventar a palavra certa) na hora. E digo isto porque herero era língua que ele não falava. Reproduzo a partir da gravação feita pela Khadi, pois tanto quanto sei é exemplar único da prosa do escritor:
“este é o meu lugar. na ágora. embora não o saibam os que aqui passam os dias, nem os que só passam. de todos escorregam por mim os olhares, detendo-se uma infinita fracção de segundo nos meus pés. lindos os meus pés, grandes, esguios, elegantes, nem parece que já andaram tanto, tanto. tanto que encontraram este lugar, o exacto lugar para eles. poisaram-se num degrau e eu neles. tornam este lugar mais belo, são como uma escultura que ilumina a ágora. por aqui a meus pés passa o mundo, o mesmo por onde eu passei. gentes de todas as partidas. falam, acenam, riem, choram, dançam, por vezes um par passa enamorado. soube o que isso é. meus pés já tocaram outros pés apaixonadamente. há muito, muito tempo, lá muito longe. esqueci. o amor esquece-nos e nós a ele. depois outros pés vieram batendo a terra, mais infernais que um batuque. lançaram-se contra os meus, pregaram-nos à terra, foi aí que toda eu entrei neles adentro. adormeci. depois (horas? dias?), puseram-se a caminho. mato, mato, mar, barco, mar, mar, mar, mar, mar, terra, mato, mato, gente. ágora. menos mal: pés de todas as cores, tamanhos e feitios. estancaram, pesados. esqueci tudo. o amor, a morte, o rapto, os mexericos, a melhor amiga, o tempo, as faltas, o riso, o choro. ficaram só palavras para dentro dos pés. agora, neste momento mesminho, seus pés se pousaram diante dos meus, face a face dos pés, reconheci, bonito, sim, nossos pés humanos nos degraus. por isso estou contando o que esqueci. esvazio-me. finalmente. estão-me morrendo os pés. vai.”
E penso que ele foi.
(Grace Nazaré)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Poesia em Scott Johnsonn


Valeu a perspicácia do Tito Pires para descobrir naquele texto corrido um rítmo de poema.
Mais que a descoberta e o profundo conhecimento do idioma, valeu a coragem do poeta arrojado que ele é, para meter-se numa tradução-versão-quase-um-original.

(Organização)

Quando o Mundo ruiu ficamos entregues ao abrigo de uma música


Tenho uma garrafa para beber
Um poema para escrever
Uma canção para acabar
Qual destes me tomará primeiro?
Sem a garrafa não conseguirei escrever
Sem escrever não consigo compor
E o álcool já não me deixa tocar…


No meio de nós está um suplício no chão
Um suplício a arder
Guiamos sem ver
Iremos em contra-mão?


Sonhar não chega e é perigoso!
Luta-se porque é um sonho e temos que tentar,
Mesmo inconscientes de que não vamos conseguir concretizar.
Iludimo-nos muito e isso magoa.
Nem é o talento que define o sucesso…
Pode ser um meio entre tantos que não nos levam a parte nenhuma!
E se o acaso acontecer
É bom ter algo para mostrar.
Por isso luto… pelo acaso…
E o sonho evolui… sonha-se cada vez mais,
Mas o acaso não vem e isso dói
Porque trabalhei e merecia,
Mas não chega…
O acaso não avalia, acontece!


Mal ou bem organizadas,
As coisas estão organizadas


Enquanto durmo sossegado nesta rua
Um homem mata,
O Mundo gira…


Talvez seja bom este pesadelo,
Se o acaso o tornar maravilhoso!

(Tito Pires, a partir de original de Scott Johsonn)

O Escaparate do Changuito

Como se não bastasse toda a poesia intremeada nessa brincadeira literária, ainda aparacem esses poemas que o Tito Pires descobriu justificando ainda mais a delicadeza do Changuito que de ante-mão oferecera um lugarzinho nas suas estantes mesmo sendo elas preferencialmente para assentar poesia.



Livraria Poesia Incompleta
Rua Cecílio de Sousa, 11, Lisboa
Segunda a sábado, das 10 às 19.45
mail: poesia.incompleta@gmail.com
Telefone: 00 351 96 000 53 60 ou 213047583
Skype: poesia.incompleta

Por culpa do Bookcrossing



E não só. Também de quem fez a arrumação da casa. Em última instância, da gerência que não atinou para as coisas fora de lugar. Ou não seria o Tejo bar.
Foi nessa sucessão de erros e culpas que todo o original da obra do Scott Johnsonn, foi parar à estante dos livros grátis do Bookcrossing.
Só se deu fé do desaparecimento dos volumes dois dias após a grande festa de despedida dos estudante do Erasmus.
Os volumes foram encadernados pela Vera numa verdadeira obra de arte, pela beleza como pela practicidade e resistência no manuseio. Explica a autora que tão diversificado resultado deu-se pela falta de material. Teve que improvisar pois não havia um tostão para o trabalho.
Os belos exemplares tanto por fora quanto por dentro não tinham a etiqueta do Boocrossing com o número de registo que permite fazer o rastreio global através da Internet.



Só por muita sorte algum desses volumes tornará a casa. Teme-se que aquele inglês tão artisticamente apurado tenha se perdido para sempre. Restam as traduções feitas por tantas pessoas dedicadas e o consolo de, como diz a Isabel, acreditarmos que tão belas páginas andam soltas por aí.


(Organização)

O rio, ou de um encontro no Tejo



Seria início da Primavera, a tarde ia já escura, o rio corria cheio. Dentro de meia hora, começava uma sessão do curso/grupo de psicodrama. Nem só ensino, mas não ainda terapia. Uma das coisas meio loucas em que me meto, por amor aos grupos. “Se Cristo voltar à Terra, será na forma de um grupo”, disse o J.L. Este, cuja quarta sessão começava daí a pouco, era um grupo sui generis, só de mulheres, por um lado cheias de vontade de “mergulhar” nessas técnicas psicodramáticas, metade da psicologia metade do teatro, mas por outro temerosas com a exposição pessoal que isso poderia trazer. Claramente, urgia uma sessão diferente, marcante, verdadeira, para que aquele conjunto de pessoas se transforma-se num verdadeiro todo, superasse as resistências, se permitisse confiar e fluir. O que fazer?

Aproximei-me do cais, brincando com os limites do passeio, deixando que parte do meu pé ficasse suspenso no vazio, com o rio em baixo. Era um hábito, quase um tique, ou mesmo uma superstição: “Se te arriscas, a inspiração vem e salva-te!”. Fechei os olhos, abri o corpo às sensações e imagens que vinham do rio que fluía lento abaixo de meus pés.

Apanhei um pequeno susto, um sobressalto, no momento seguinte, que quase me fez desequilibrar. Senti que não estava só. Ao meu lado direito, a poucos passos de mim, um vulto, da minha estatura, parecia emular os meus ligeiros movimentos. Fiquei momentaneamente confundido, sem perceber se se tratava de uma ilusão de óptica, de um reflexo, de um efeito do lusco-fusco, ou de uma visão da morte, como se ela adivinhasse em mim um intento de mergulho. Talvez fruto das minhas leituras recentes sobre a angústia de morte? Tudo isto me passou pela mente naquela fracção de segundo que mediou entre a percepção daquele fantasma e o dar-me conta de que era, afinal, um homem, de carne e osso, que confirmou a sua materialidade grunhindo uns gemidos ininteligíveis, guturais, mistura de voz humana e instrumento de sopro, com um não-sei-quê de antigo, de velho, de bafiento.

Do susto, passei de imediato para uma sensação de angústia, de temor, antecipando um mergulho daquele sujeito no rio (curioso, escrevendo estas linhas recordo agora que parecia mais ser o rio a querer lançar-se sobre o homem…). Sem me aperceber, gritei, um grito que se projectou como um braço sobre o peito dele. Também ele se assustou, não me tinha visto. Estava claramente perturbado, um esgar de ausência, ou melhor, uma expressão de quem acabava de chegar de um outro mundo. Estrangeiro, claramente estrangeiro. Avancei para ele, não consigo lembrar-me do que disse, mas soube que não ia deixá-lo ficar sozinho. Entabulamos uma curta troca de palavras, chamava-se Scott, era escritor, o português dele confirmava o seu aspecto, apercebeu-se de que eu temi pela sua vida. Recordo-me que afirmou que tinha estado essa tarde com um angolano, escritor também ele, que tinha ficado com a mesma cara que viu em mim: a da proximidade da morte.

O tempo passava, as alunas esperavam-me, Scott não podia ficar só. “Queres vir comigo a uma aula?”. “What?”, respondeu. “Vem comigo, vou dar uma aula sobre uma forma de trabalho com grupos chamada psicodrama, não podes não gostar. Ainda por cima, vais conhecer nove mulheres giríssimas, vamos contar histórias e talvez dramatizar alguma, quem sabe, a tua?” Eu próprio não acreditava que estava a dizer aquilo, que situação mais absurda, levar um desconhecido, perturbado, para uma aula, sem aviso prévio. Mas tampouco podia deixar de o fazer, tinha a clara sensação de que estava a fazer o que tinha de ser feito. Scott nada perguntou, simplesmente começou a caminhar como se fosse ele a guiar-me para a faculdade onde a sessão decorreria.

Já durante o caminho, de pouco mais de uma centena de metros, até à escola, notei como se transformava aquele homem. Eram os olhos, o olhar, que parecia começar a projectar histórias, como se a vida de súbito encontrasse uma canal e se desmultiplicasse em narrativas possíveis. E tudo isto, num quasí-silêncio, quebrado aqui e ali por uns nomes e palavras soltas, em inglês, e por uns sorrisos que me dirigia. Quando paramos, para atravessar a última rua, encostou o seu ombro ao meu, como se me tirasse as medidas e confirmasse que poderíamos trocar de roupas, se precisássemos. Eu, mais do que preocupado, começava agora a estar fascinado. Levava para a sessão um personagem, um autêntico personagem. Levaria também o autor?

Atravessei os corredores da escola, labirínticos, e mais de um olhar se voltou, efeito da presença daquele ser, que tanto poderia ser um convidado de honra, com todos os PhDs e Cum Laudes do mundo, como um refugiado a pedir asilo político. Ou asilo emocional, que algo cheirava nele a cachorrinho órfão de pai e mãe e irmãos. A minha mente esforçava-se por encontrar uma linha coerente para organizar as duas próximas horas da minha – das nossas? – vidas, mas já subindo o último lanço de escadas decidi seguir a lição mais importante que me deixou o Sr. Francisco (diz-se da Holanda, mas a sua geografia é demasiado sinuosa para ser suportada por tão plano país): “Aja duas vezes antes de pensar”. Deixei a mente então a trabalhar em ponto morto, e passei à interacção, as alunas esperavam-me já, quase todas, e Scott foi, ao entrar na sala, o foco de todas as atenções. Entramos e começamos a afastar as mesas, fazendo um círculo com 11 cadeiras. “Team di futibol?”, disse ele, e depois de um curto e espontâneo sorriso sedutor, caiu a pique numa tristeza que, de tão triste, invocou a criança abandonada de todos quantos ali estávamos, naquela roda.

Não tive tempo nem para as apresentações, que, de facto, eram desnecessárias. Estava ali um homem. Ponto. Era, todos os demais sabíamos, o que nos tinha faltado nas sessões anteriores. E não era o género masculino, não, o que estava em causa. Era a verdade humana, o sofrimento exposto numa face, a história toda de uma vida naquele silêncio, naquele turvado olhar onde, como minutos atrás, o Tejo corria, esse Tejo que corre em todas as aldeias aquém e além mar. Quebrar esse silêncio seria sacrilégio, deixá-lo demasiado tempo poderia ser angústia demais para o grupo, assim, de chofre, sem sequer uma única palavra minha. Acordei do limbo pelo som da minha própria voz: “Scott, o que vê? O que sente?”

O que saiu de suas entranhas foi um misto de ladainha e cacofonia poliglota, das quais apenas consigo reproduzir “Beckenbauer, Partido del Siglo, Schön, liebe, Heraclitus, zug, river, I see a river…”. “Vejo um rio”, isto eu ouvi claramente, e fui atrás da imagem, como um urso segue o cheiro do mel, e aquele mel tinha um cheiro intenso. “Como é esse rio, Scott? Diga-nos como é esse rio…”. A minha mente tentava, aqui e ali, entrar em cena e controlar tudo. Uma voz em mim dizia: “Mas nem fizeste o aquecimento, elas nem sabem que ele é, ele não sabe quem elas são, que fazes??? Pára!”. Felizmente conhecia bem essas vozes e mandei-as passear. Aquecer aquilo que está em ponto caramelo? Vai acabar torrado! Deixa correr, este homem precisa de se exprimir, não tenho de o proteger, ninguém o conhece neste grupo, ele sabe que pode confiar em mim e, além disso, parece empenhadíssimo em fazer este jogo, mergulhar neste momento. E deixei correr.

“Este rio ser escuro, estreito, e chamar por mim. Este rio tem caros… tem carras… no fundo há… haver…”. “Há o quê?”, disse a Alexandra. “Cars and faces. This river calls for me, must dive.” A entrega daquele homem surpreendia-me. Amais, naquele contexto, onde uma semana antes tínhamos passado duas horas a falar de resistências à entrega… Disse-lhe: “Scott, quer mergulhar nesse rio?”. De olhos fechados, como se lesse um livro antigo, declamou: I hate catching spiders. Still, a man's got to do what a man's got to do”. “Temos letrado!”, sussurrou-me a Guida.

Pedi à Madá o seu lenço longo, azul, que quasi sempre trazia ao pescoço. “Posso?”, e estendi-o no chão. “Scott, aqui está o rio, como há pouco. Que queres fazz.?”. Não cheguei ao fim, ao longo da minha frase o corpo dele recuou um pouco e depois inclinou-se, num movimento ágil, puxando o lenço para cima de si e deixando-se girar, estendido no chão, de barriga para cima.

Morto. Parecia um morto, de mortalha de morto, azul cobalto, muito azul e no entanto morto. Baixei as luzes, quase ao mínimo. Todas as que estavam sentadas em cadeiras, num movimento quase coreografado, se sentaram no chão, apertando o círculo. Se alguém entrasse agora naquela sala, pensaria tratar-se de algum bizarro ritual, talvez impróprio para uma escola superior. Felizmente, o grande “ψ” que se pode ver na entrada da faculdade tem as costas largas…

“Pense em voz alta, Scott”. Nem me dei conta, mas estava a tratar por “Você” este homem que, na rua, tinha tratado por tu… Coisas dos contextos… “Este rio chamar por mim desde sempre, estar nos meus sonhos desde criança. Era antes muito forte, wie ein zug, era uma massa de água forte como um train, trem”. “O que sente, Scott?”. “Mein Herz, my heart, o meu coração, muito assustado, muito piquinino”. Ergueu as costas do chão e procurou conforto no olhar da João. Silêncio. “Quem é, Scott, de quem é esse olhar?”. “Opa! GranpaJan! Meu vô Johannes!”. Note-se: Scott não sabia da coincidência de nomes, até porque “aquele” João era Maria antes de ser João. Mas estas coincidências fazem-me sempre acreditar na sabedoria dos grupos nos seus olhares calados, nas longas conversas que se fazem nos silêncios, nos e com os corpos…

A João, sem precisar qualquer indicação minha, levantou-se lenta e, como se seguisse um guião ditado pelo olhar de Scott, rodeou-o, sentou-se atrás dele, deixando que o peso do seu novo neto pousasse no seu peito. Afagou-lhe, ligeira, os cabelos. Scott, criança agora, olhava em frente, como se visse algo a dois metros de si. Com uma excitação contida, olhou para trás, procurando o olhar do avô João. Era uma deixa para uma troca de papéis. “Scott – disse -, gostava que trocasse de papéis com a Maria João, ela faz agora de si e você faz de seu avô, pode ser?”. Scott nem hesitou, como se aquilo fosse o seu estilo de vida. Era um homem dos teatros, dos papéis, dos personagens, aquela criatura. No lugar do avô, fechou momentaneamente os olhos, como se entrasse no papel. Ficamos todos em suspenso, notou-se que todos nos inclinámos ligeiramente para a frente, como se esperássemos um ligeiro murmúrio. “Toooooooooor!”, explodiu, quase matando de susto todos, em particular a João, que agora, no papel de Scott criança, estava ao colo do avô. “Gooool, goal, golo! Schnellinger!!!” Scott, aliás, o avô João, olhava agora o seu neto, como se esperasse uma reacção. “Troquem”, disse eu, e de novo Scott foi fazer de si próprio em criança e a Maria João se colocou no papel do avô. “Gooolo!”, gritou ela, e o neto, de imediato, começou a soluçar. “Scott, querido, que se passa?”, dizia a João, aliás, o avô João. Scott chorava, inconsolável. Deixei os momentos passar, até que Scott começou a balbuciar… “… sozinho, tenho medo, não me deixes”. “Não te assustes, foi só um golo, um susto, já passou!”. “Nein, Opa, estou sozinho, não me deixes…”. A João não sabia o que fazer. Sugeri uma nova troca de papéis. Scott, no papel de avô, levou o neto para a cama, deitou-o, afagou-o, acalmou-o. Decidi que era altura de Scott ser ele de novo, criança a ser deitada por seu avô. A João fez o seu papel com um carinho extremo, mas aquela criança não sossegava. Pedi ao “avô” que saísse, e perguntei a Scott, que estava tapado pelo lenço azul como se fosse uma colcha: “Como está esta criança? Dorme, sonha?”. “Acordado, estar acordado. Meu avô não saber ainda, mas meus pais morrer, eu estar sozinho. O golo da Alemanha foi só para tapar estrondo do comboio, foi horrível. A polícia vai aparecer nossa casa, meu avô quase morrer, não quiser-me contar…”.

Os minutos seguintes foram comoventes. Entre trocas de papéis, que não assinalo para não perder o ritmo do diálogo, percebemos todos que aquela relação entre avô e neto marcaria a vida de ambos até ao fim:

S.: Ja, Opa, ja Opa. Eu saber que mama e papa gostar muito de mim, mas quando ver eles? Juras que estão à nossa espera em América? Ter um restaurante e bar? Quando vamos viver eles?
J.: Breve. Mas eu leio-te as cartas deles, enquanto tu não aprender a ler. Olha, esta chegar hoje: “Dear Scott, mama e papa estar muito bem. Restaurante muito cresceu, muitos empregados, papa vai ver muito boxe, todas noites, mama aprendeu cantar e canta no bar restaurante noite. Vida América muito boa, poder vir com avô. Se nós não estivermos cá quando chegarem, é porque fomos viajar, mas vamos escrever muito. Beijos no avô Johannes. Aprender depressa a ler, para escrever nós cartas.”
S.: “Opa, mama e papa não vão estar América quando nós chegar?”.
J.: “Vai estar, sim, vai estar…”.

Escrever, escrever. A escrita e a imaginação, como não, foram as saídas desta criança. Não percebemos grandes detalhes sobre o que aconteceu nesses momentos da sua vida, mas tínhamos visto ali uma criança marcada pela perda, por um medo maior do que podia suportar, e com uma saída que parecia surgir-lhe à frente como quase única: manter, no imaginário, o contacto com aqueles pais subitamente desaparecidos. E o avô, como garante solitário do seu conforto.

“Scott, ainda temos algum tempo, posso lançar-lhe um último desafio?”. “Sim.”. “Então faça o seguinte: apresente-nos, na forma de um quadro, de uma fotografia, de uma cena, aqui no meio, a sua vida, tal como a vê neste momento.” “What?”. “É simples, trata-se de que coloque aqui no centro do nosso círculo, pessoas, coisas, símbolos, o que quiser, como se estivesse a fazer um quadro vivo sobre a sua vida. Vá fazendo, vai ver que é simples”.

Scott colocou-se quase no centro do espaço. Olhando em redor, escolheu a João, a Alexandra e a Madá, e colocou-as atrás de si: a João logo atrás, quase tocando-o, mas sem contacto visual, a Alexandra à sua esquerda, num dos cantos virtuais do espaço que começava a desenhar-se, e a Madá no “canto” direito. Olhando em volta, encontrou alguns livros em cima das mesas, e empilhou 4 deles no sítio onde estava, sentando-se em seguida sobre eles. Por fim, colocou as restantes pessoas à sua frente, mas agrupadas a duas: um par parecia lutar / dançar, outro jogava cartas e bebia, o terceiro simulava uma trapezista e o ajudante que vela pela sua segurança. Percebemos, pelas suas curtas explicações enquanto montava aqueles pares, que cada um contava uma história.

Um resumo, muito resumido mesmo, daquele quadro: Scott no meio, sentado em cima de livros, atrás de si, um trio, que revelou ser o avô (logo atrás), a mãe e o pai (nos cantos), e à sua frente 3 histórias, e mais seriam se mais pessoas houvesse ali…

“Obrigado, Scott. Então isto é como você vê a sua vida, hoje. Olhe, venha para aqui, ver o aspecto da sua obra desde aqui. Eu substituo-o”. E trocamos de lugar. Scott murmurou uns sons, como se observasse algo de muito evidente para ele. “Volte para aqui, Scott. Agora, gostava que, para terminar, nos mostrasse, não como vê a sua vida, mas sim como gostava que ela fosse…”. De imediato, e como se tivesse antecipado a minha proposta, Scott levantou-se, girou 180 graus o seu corpo, e sentou-se de novo. Ficou assim com os “pares contadores de histórias” nas suas costas e com a sua família à sua frente. Permaneceu em silêncio uns segundos. De uma forma espontânea, deu um pequeno passo e abraçou o avô. Aí permaneceu uns segundos, até puxar o avô com ele até seu pai, a quem abraçou igualmente, emocionado e emocionando. Deixou o avô com o pai, tocando-se, e, olhando primeiro o chão e, a pouco e pouco, dirigindo o olhar ao de sua mãe, foi começando um murmúrio e, já num abraço de total entrega, começou num pranto acompanhado de um longo e totalmente incompreensível queixume, em alemão. Assim ficou longos minutos, sempre abraçado, sempre em murmúrios. A Madalena, habituada às lides de mãe, mantinha o abraço e ia também murmurando na língua que falam mães e bebés.

Deixei o silêncio tomar conta da sala, antes de sugerir que nos sentássemos. Abri o momento dos comentários, mas ninguém tinha nada a dizer, nem Scott. Parecia exausto. Não me recordo de grandes detalhes, sei que também não disse quase nada, apenas agradeci a todos e ao Scott. Alguém bateu à porta, era um empregado que nos vinha expulsar, a hora de fecho da faculdade já tinha passado. Descemos, saímos da escola. Houve uma troca de olhares final, sorrisos cúmplices, agora que aquele novo cenário, de automóveis buzinando, estudantes e boémios cruzando-se, gente apressando-se em direcção à estação próxima, começava a trazer-nos da nossa longa viagem. Scott, lentamente, foi deixando a sua atenção dispersar-se por todos estes estímulos. Um novo semblante surgiu no seu rosto, quase antevi um esboço de cor rosácea, como se tivesse ficado ligeiramente envergonhado, olhando as escadas íngremes que subiria em seguida. Parecia querer dizer que tinha de ir, deixar-nos, mas o seu quase imperceptível rubor deixava adivinhar um encontro aguardado. Seria uma amiga, uma amante? Quando Scott começou a subir, de costas para nós, a Cláudia disse: “Direitinho ao Tejo Bar…”. A mim, a vontade levou-me de novo para a margem do rio.

(A.G.)

Um mortal de papel




Tantos papéis!
Voavam esbranquiçados na noite luzidia e turva. Folhas de papel A4. Por momentos pensei que o vento tinha libertado o lixo acamado nos caixotes ou então poderiam ser papeis de crianças que brincaram de dia no jardim perto do bar, voavam pelas ruas íngremes onde ao corrermos podia constituir sempre uma aventura melindrosa e até brincalhona, um bailado.

A correr, defendo-me do asfasto, do vento e das paredes incertas das ruelas, tentando não olhar para os candeeiros, para a lua para não me distrair, abstrair-me ou ainda ir ao encontro de outra coisa qualquer e desistir. Concentrei-me.

Na mão esquerda tinha o meu casaco e a mochila para trás das costas, corria atrás das folhas seguindo o instínto das que devia apanhar, uma delas rasguei-a, com a força de a trazer até mim, outra voava escada abaixo do beco. Foi quando pensei que só tinha de apanhar uma que fosse.

Não me podia era distrair, olhar para os candeeiros, para noite, para lua, para nada, o objectivo era apanhar uma folha de papel. Mas estas esvoaçavam cada vez mais alto, então, ja me divertia a tentar apanhar as que voavam altas e faziam--me saltar. Umas esvoaçavam directas ao rio; Portanto, o pessoal da outra margem amanhã terá incentivos para acordar, quem sabe nem dormir a colher letras de letras e palavras. Por um dia esqueçam que vão dormir mais um pouco na multidão de colchões humanos que são trazidos pela manhã, em forma de gente.
- Vão estar acordados... imaginemos com os corpos ondulados à procura de outra e outra folha.

Por cá, deste lado do tejo, os moradores manifestavam-se devido ao barulho que se fazia sentir no bairro, apesar da brancura dos papéis dizerem o contrário. E, foi então que encontrei, uma coisa, como uma prosa ainda por construir e alguns esboços de poemas.

Então aquele homem de olhos repteis, porte arrogante, mas desgrenhado e sem medo de cheirar mal que entrou pelo bar a dentro, olhando para todos os ângulos e saiu quando alguém o olhou estava perdido. Pensa-se.

Encostada numa parede na penumbra, ouvindo o ruído dos meus conterânios que habitavam o bar. Lia e tentava descortinar, a letra e identificar o olhar fugídio reptil daquele homem que tinha tirado a todos o sossego e a alguns aquecido mais a ”vida morna” que se fazia sentir nestes tempos.

Para não ouvir mais comentários, nem murmúrios sequer, lia as duas folhas que vieram cá parar, em pé com as pernas cruzadas.

Naquela noite neste bairro voavam palavras, prosas, histórias de História, poesias, tantas coisas que alguns até pensavam enriquecer quem sabe… acrescentando alguma coisa às palavras, à história até poderia dar para editar um livrito, ou ao jeito do bairro dizerem "que estava pronto a sair" acabado de escrever:
"Não fosse esta, uma Nacão de poetas" .

Só me resta saber mais do homem que olhei no bar, com olhos de reptil; rã exageradamente altivo, fato beije cheio de manchas de óleo, que se apresentou como "jonhnn", o homem dos dois "nn" como aqueles, que falam mais alto quando dizem o apelido.

Apresso-me a ler um dos papeis:
"Aposentei-me não sei se de escritor ou retratista de histórias, mas vou fazer esta viagem. Vou viajar até ela. Se o meu amigo a descobriu na sua tese de Mestrado em "Gente do Povo-que sabe Cantar". Eu vou sua procura- la.

E entrou mundo a dentro, melhor europa a dentro. Mas antes desta aposentação vou encontrar a musa morena, de cabelo farto, baixa e forte, como se de uma rural se tratasse, mas que deu sabor às palavras, aos versos e que enriquecia as ruas mouras de uma daquelas cidades para os lados de Espanha ou Portugal.

Enfio-me no primeiro barco que vá para Espanha, digo às tias que parto por uns tempos para Hamburgo para descançar, pois ando frágil e cansado, farto de me assustar com os sons vindos deste casarão, ainda oiço os passos do meu pai e o ranger da porta do meu quarto pela tia Rita a verificar se durmo, se o naperon do copo de água está direito.
- Não, Não é desta!

Enfio uns fatos de inverno na mala preta e escondo-a no jardim e vou: eu e as minhas folhas atadas por um cordel, o meu diário gráfico em branco e entro no primeiro barco que vá para Espanha, nao melhor ... "Madrid".
-Se ela vivia numa cidade, se era uma zona mourisca e se cantava como só os árabes sabem apregoar. Vou parar em Madrid; Logo de vê...

Embarquei, sabia que se dormisse podiam roubarar-me a bagagem e perdi-a. Na verdade perdi-me. Sei que vim parar a Paris, vagueei por lá, encontrei-me com alguns esquerdistas, que tinham um semblante desgastado e outros que acreditavam que podiam fazer uma revoluçao. Todos eles tinham uma paixao em comum pelo vinho, outros até pela Heroina.

Havia então, uma revoada de pensamentos ideologicos e quando percebi que estava a manifestar-me entre extremistas de direita com ar saudavelmente animalesco que tentavam brilhar nas lentes, dos homens e mulheres de esquerda, resolvi fujir. Nunca fui dado a confusões. Ainda por cima, já as tias deviam de andar à minha procura, nos postos de correio e hospitais da Alemanha.

Chego a uma estação e falo do meu sonho, havia por lá uma mulher ávida de dar informações:
"- Essa é uma história portuguesa, a mulher que o sr. jonhson ou jonhn fala é da Severa! - ouvi, sem falar.
"-Não é para estes lados... é lá para Mouraria, num desses bairros, mas a história é antiga sr. Jonn..é assim que se diz?
Sim. sim..
- Cantava Fado e morreu nova foi da vida...
e continuava a falar sem coordenação. Senti. Afastei-me, os meus ouvidos faziam ressonância, a voz dela era alta, zangada, ao afastar-me, agradecia, agradecia, até ficar com os rins a picar de dor.

Parti, melhor fuji. Queria ver a minha musa, sei que era uma prostituta, que todos os homems a cobiçavam só com o rolar do cabelo, sei que era do povo. Mas como ouvi dizer que havia gente de brazão a juntar-se a ela, à sua carne, à sua pele perseguia-a, cada vez mais àvido de ver algo igual a ela, que cheira-se a ela, a tal que diziam ter feito nascer o dito fado. Cântico, dito e cantado pelo povo em sitios com aspecto medieval, tavernosos. Os quais procuro.

Quando cheguei a Portugal ja não tinha sapatos, os meus pés eram iguais aos dos meus companheiros de estação, cheios de chagas, foi quando roubei uns sapatos ao outro que dormia aqui ao lado. Depois de uma boa refeição e fortalecido decidi dirigi-me a um dos locais onde ainda não tinha estado. Estava com medo, porque não encontrara nem severa, nem taberna, nem musas, nem fado onde se possa entrar sem umas boas notas no bolso. E onde as prostitutas são todas magras e adoentadas, pelo menos lá para o lados da musa de nome "Severa".

Nada que se parece-se com a roliça fadista. É assim que chamam aos amantes dessa musica, "fadistas". Mas estava decidido, depois de ter aprendido a roubar meias, cuecas, sapatos, ser rejeitado nas festas sociais em Paris e ter dormido como moribundo, mas de sangue azul, tal como faço questão de frisar quando estes papéis forem borda fora.

Entrei naquele bar, olhei, fuji. Vi os bares todos ali dentro, as tertúlias de Paris, a casa de amigos de amigos, as noites animadas com artistas circo, a dormência das pernas atacou-me, o zumbido voltara de novo, a cara dela, os olhos, ainda toquei na perna........."

Foi isto que li, há mais qualquer coisita, aqui, ali. Na manhã seguinte fui à estação de Santa Apolónia e um homem de media idade, que dormia por ali, disse-me:
- Quê! um tipo com ar esquísito que andava sempre com um saco agarrado ao peito?" - outro dizia - Não sei.
Outro, só para participar dizia:
-"Sim, aquele gajo esquisito". Andava aí agarrado a um saco.... murmuravam e ao olhar revivi por momentos a identicação dos pés em chaga do meu desconhecido mortal.

(Paula Boavista Boto)

Petrus cabreiro em fuga



Aqui vai a minha contribuição para a história das aventuras do nosso muito amado escritor Petrus Scott Johnsonn. Acrescentei-lhe o nome Petrus (Pedro/Pedra, Calhau) para o tornar mais pessoal, mais próximo, pois Scott e Johnson são apelidos. Geralmente as pessoas vaidosas é que usam só os apelidos. Entre outras coisas, o uso apenas dos apelidos não nos permite saber se estamos perante uma personagem masculina ou feminina.


O escritor Petrus Scott Johnsonn, nos últimos tempos, tem manifestando descontentamento com a vivência no mundo capitalista, porém mais recentemente acentuou-se a sua desilusão e desencanto com os excessos do capitalismo transformado em neoliberalismo predador da riqueza dos povos, que deveria servir para prover as necessidades de toda a humanidade, pelo menos com um mínimo de decência e dignidade. Desencantado Petrus, teve a ideia de se refugiar na brilhante Serra da Estrela. Se bem o pensou melhor o fez! Para se ocupar e ao mesmo tempo adquirir experiência e, quiçá, matéria para mais um relato das suas intermináveis aventuras, decidiu tornar-se pastor. Pastor de cabras. A cabra é além do mais um animal muito bonito, alegre e, segundo a mitologia, está associado aos faunos, ao deus Pan, e ao próprio Diabo. O Diabo que, como é manifesto, é amigos dos pobres e dos desfavorecidos e, portanto, não vai à missa dos neolibaralistas nem se passeia entre os seus anafados deuses. A vida de pastor, que a Petrus Scott se afigurava idílica e feliz, a breve trecho,tornou-se um inferno, pois o amo, pôs Petrus a viver permanentemente com o rebanho - e a dormir no redil - a comida era pouca e de má qualidade. Petrus passou a ter que partilhar as mamas das cabras com os cabritos. Quando, certo dia, pediu ao amo algum dinheiro, para matar saudades de beber uma cervejita, a resposta que obteve foi uma barrigada de porrada! Exactamente, porrada, com um porreto ou varapau! É claro que o estado de ânimo de Petrus S. Johnsonn não podia ser pior. "Este mundo é mesmo cão", pensava e repetia de si para si vezes sem conta. "Vivemos num mundo cão!" A única solução que Petrus vislumbrava para o seu futuro imediato era fugir dali. Mas fugir para onde? interrogava-se, ainda por cima sem dinheiro e sem quaisquer condições materiais e não conhecia ninguém, nas imediações, a quem pedir ajuda! Apesar da situação deplorável em que se encontrava o nosso escritor não perdeu o sentido de humor e tentou convencer-se que o melhor sítio para onde poderia fugir era para Raiva! Bastava-lhe descer o vale do Rio Mondego e, assim conjugaria o seu estado de espírito com o nome do sítio! Contudo, pensando mais demoradamente no assunto, concluiu que, deveria era fugir para Picha; ali para os lados da Serra de Sicó, onde também se faz bom queijo e melhor vinho! Sim, fugir para picha, porque não conhecia nenhum lugar chamado Caralho. Se conhecesse era para lá que fugiria. Bem, mas pelo menos iria para um sítio cujo nome é sinónimo do "pai da gente", razoneava Petrus com os seus botões. Mas, há sempre um mas a considerar, se fugisse para Picha, os seus amigos - e os inimigos - poderiam levantar dúvidas sobre a sua orientação sexual. Dúvida caluniosa. É que a calúnia é como a poeira, quando levanta não deixa ver bem e, quando pousa, suja! Todavia, todavia, Petrus encontrava sempre mais un senão nas suas escolhas: para qualquer destes lugares tinha que ir a pé! Foi então que o seu cerebrozinho começou a flashar com uma ideia luminosa: tinha encontrado a solução! Abandonar aquela vida de cabreiro e fugir para Puta que Pariu, é que para este lugar até podia ir de autocarro! Na noite seguinte, enquanto as cabras ruminavam, o amo dormia e os cães ladravam, Petrus Scott, escapoliu-se do redil e tomou o autocarro para Puta que Pariu:




(Walter A. Silva)

Una leyenda


El “Escritor” nunca mas fue visto por estas tierras pero hasta el dia de hoy se sigue hablando de el y como toda leyenda se agregan historias de las que nadie supo jamas.

(Carlos, "El Argentino”)

Comunicado I



Aos escritores, Ondjaki, Inês Pupo, Filomena Cabral, Daniel Machado, Filipa Leal, Xosé Ballesteros, Agualusa, António Barreto, Mia Couto, Pedro Mexia e José Mário Silva (penso que falhei alguns) que manifestaram interesse em participar da aventura literária de dar corpo e alma ao escritor Scott Johnsonn e que não possam dar a cara devido a cláusulas contratuais com editoras e também aos outros participantes que por um ou outro motivo prefiram o anonimato, assinem as obras com pseudónimo ou entreguem como autor não identificado, o que já aconteceu mesmo sem querer e não é de espantar pois a brincadeira já conta com mais de 250 interessados.
Certo é que procuraremos levar essa empreitada o mais independente possível, mas nunca se sabe que proporções tomará. O que hoje não passa de um exercício de criação artística que dá oportunidade a escritores, outros oficiais e leigos a se integrarem, onde vale mais a obra que a assinatura, amanhã, pode cair no esquema comercial e há que salvaguardar os direitos dos autores portanto, apesar do pseudónimo, o registo da obra será sob o nome legal, que só para esse efeito será usado se assim for o desejo do autor.
Por ora, é só.
Seguiremos dando notícias sobre o desenvolvimento do jogo.
A quem não quiser receber os comunicados pedimos que mande uma mensagem.

(Email da organização)

Fim da primeira fase



Semeadura
Com o final da Feira do Livro de Lisboa encerramos a primeira fase da nossa aventura literária que conta com 220 interessados em participar.
Colheita
Agora, começa a segunda fase que se estenderá até outubro para aproveitamento do período de férias.
Cozedura
Começa em novembro e sabe Deus quando acabará.

Obs:
Alguns participantes têm demonstrado certa inibição ou receio para expor as suas ideias que por vezes são bem interessantes e criativas.
Não se acanhem.
Se por um motivo ou outro não puderem colocar a sua intenção no papel, conte-na e procuraremos estabelecer parceria com quem tenha maior disponibilidade ou aptidão.

Faça gosto ao dedo e lembre-se que vale qualquer língua e qualquer linguagem.

(Email da organização)

Gilberto Gil, o Feiticeiro

Fim da noite/Fin de la nuit

La nuit s’estompait et la brume recouvrait tant le quartier d’Alfama que l’esprit de Scott Johnsonn.
Mais déjà les premières lueurs du jour cueillaient son cerveau toujours alerte. Il avait cessé de pleuvoir.
Ah la pluie, la pluie, un miracle. Devant les derniers clients Scott commença une histoire.
J’ai vu un miracle, un vrai miracle. Ecoutez cette histoire c’est une histoire vraie. J’ai des témoins qui pourraiient la confirmer.
C’etait un Carnaval. Pas n’importe lequel des Carnavals. Le plus mystique, le plus endiablé, celui de Salvador de Bahia.
Le temps était moite, l’ambiance electrique. La fête battait son plein. Les chars passaient, rythmant la foule et déclinait la joie de vivre.
Surgit tout d’un coup le seul char ouvert à tous sans cordes pour en limiter l’accès. Avec Jorge Benjor le grand et Lulu Santos le populaire, un troisième musi-magicien menait le bal.
C’était Gilberto Gil, le ministre de la Culture, le musicien immortel qui mieux que personne savait parler la langue universelle, celle du coeur et de la passion.
Après les chars populaires qui avaient défilé, celui du ministre était pour moi comme un oasis dans la tempête. Comme hypnotisé je quittais le bord de la route pour le suivre. Bien m’en pris!
Après les taj mahal et autres que nada que le trio entonnait pour célébrer les compositions de Jorge Benjor, ce dernier initia “Chove chuva, chove sem parar”, un hymne à la pluie.
Et lá croyez-moi ou non, un miracle s’est produit. La pluie, qui n’avait pas donné signe de vie depuis plusieurs jours à Salvador, s’est mise à tomber à grosse goutte, tout d’un coup, au son de la chanson.
La foule autour du char était en délire. Je me pinçais plusieurs fois pour m’assurer que je me rèvais pas. Non, c’etait le monde réel, le Carnaval en folie, la danse, la transe, la chanson de la pluie, le ministre et la pluie magique. Une pluie indiscutable, simple, profonde, evidente, pleine et vive.
Et croyez-moi ou non, sitôt que les musi-magiciens passèrent à la chanson suivante, la pluie cessa comme elle était venue, soudainement, pleinement. Et pendant plusieurs jours le temps resta sec.
Le premier rayon de soleil toucha la plus haute des maisons sur la place devant le bar.

Scott Johnsonn avec 2 n montrait des signes de fatigue. Sous le regard toujours aussi fasciné des derniers clients du bar, qu’il avait captivé avec son discours au point que plus aucun ne cherchait à s’accrocher à une dernière cigarette ni à un dernièr verre, le barman pu enfin vider les tables, tandis que l’écrivain venu de nulle part s’assit sur les marches devant la salle, le regard brusquement lointain, aténué, mais heureux. Il dormait.
P. S. : Essa história é verdadeira.

(Theo Bondolfi)
(…)
Ele leu, e de outra maneira passaria desapercebido, que um ministro de um país amigo fora impedido de entrar nos Estados Unidos com um visto normal e que deveria esperar por um especial. Foi ver direito, o país era o de nascimento do seu pai, o ministro em questão tinha a tez tal qual a da sua avó. Descobriu que o ministro era também artista e que protagonizou o episódio relatado pelo Theo Bondolfi e pensou:
Acho que o governo americano não gosta de feiticeiros!

(A organização, segundo palavras do Scott Johnsonn)

Mapa Astral




(Maria João)

Maria

Maria dominava como ninguém a arte de bem gerir o restaurante, sempre teve muito jeito para o negócio, sendo extremamente hábil a negociar com os fornecedores para obter preços especiais e descontos, por vezes era uma autêntica “carraça”, tão chata tão chata que vencia pela exaustão. Ficava muito orgulhosa, pois era tão boa como qualquer homem, ou mesmo melhor.
Porém, Maria tinha o desgosto de não conseguir namorado. Sendo tímida, feia, gorda, com juba de leão e com uma cor de cadáver esgadelhado jamais conseguiria um gajo bonito e decente. Quem é que iria gostar de um trambolho como ela. Ia morrer velha, seca, burra e amarga, sem amor.
Afogava as suas mágoas nos números, nos cozinhados e nas larachas com os clientes do restaurante (os habitués, não os estranhos). Gostava de brincar e dizer piadas, mas demorava um pouco ambientar-se às pessoas novas.
Este mal-estar tinha uma razão de ser…quando Maria andava na segunda classe teve uma paixoneta secreta por um colega de turma, David era seu nome. Maria olhava para ele e babava, achava-o lindo de morrer, cada vez que David passava por perto ou falava, Maria ficava tão vermelha que sentia a sua cara a ferver e não conseguia dizer nada. David era um espectáculo, era loiro, olhos grandes castanhos esverdeados e estava sempre a rir. Maria confessou à sua melhor amiga Anita que gostava de David, por sua vez Anita descuidou-se e disse é bruxa da Dina. Esta miúda era cruel, tinha a mania que era boa, e como é óbvio gostava de David fazendo tudo para cair nas boas graças dele. Maria era gordinha e para o lanche levava sempre alguns doces, partilhando com as amigas, inclusive com David. Dina não gostava daquela intimidade e depois de saber que Maria tinha um fraquinho pelo seu querido pensou que aquilo era demais, e decidiu tomar medidas drásticas. Certo dia, Dina combinou com uns rapazes para colocarem uma lagartixa pequena de plástico na lancheira de Maria. Quando esta foi abrir a lancheira, o boneco de plástico saltou, para a cara, sujando-a de creme, ao mesmo tempo a sua lancheira caiu. Maria com medo da lagartixa que lhe saltou para cima gritou o mais alto que pôde e ainda por cima ficou suja de creme da bola de Berlim, porque o boneco estava todo coberto pelo creme e para além disso, Anita entornou sem querer o iogurte líquido que estava a beber em cima de Maria, que por sua vez correu para longe aos gritos a esbracejar, toda suja de creme e iogurte. Esta cena hilariante fez com que toda a malta risse descaradamente, inclusive David. Maria ficou tão envergonhada. Mas ainda não satisfeita, Dina humilhou-a, dizendo a todos que Maria, a miúda Gorda e feia como um bode estava interessada em David. Dando origem a outra risada geral. Maria só lhe apetecia desaparecer e fugiu para a casa de banho lavada em lágrimas.
Aquelas palavras maldosas sempre ficaram no inconsciente de Maria. Havia dias em que se mirava ao espelho e pensava que não estava assim tão mal, no entanto havia dias em que se achava horrorosa, até tapava o espelho para não ter que ver a sua própria imagem.
O pai tinha muito orgulho na sua filha, ela tinha amigos e amigas, saía, mas tinha sempre a sensação que ninguém iria amá-la. Havia mulheres tão lindas e ela era tão malfeita. Para Maria, Deus tinha-se esquecido dela.
Dizia para si própria: - com tanto gajo no mundo e ninguém olha para mim…porquê, mas Porquê???
Maria estava determinada a mudar de atitude, pois as suas amigas diziam que ela era maluca, paranóica até. Diziam que Maria era bonita, o problema estava relacionado com o facto de ela fugir dos homens a sete pés quando se apercebia que podia haver algum interesse. Diziam que Maria era a culpada de não ter ninguém porque afastava os homens. Maria negava...claro que não…não era verdade…ou era!?
Pensou em fazer uma auto-análise sobre a sua vida. Era bem-sucedida profissionalmente, estava bem com sua família, tinha bons amigos, bem financeiramente, tinha uma saúde de ferro, só faltava um namorado, mas o pior é que nunca tinha tido um namorado. Isto era estranho. Pensou…pensou…pensou e verificou que tinha medo. Mas medo de quê? Fogo, não acredito eu sou uma medricas de merda. Não pode ser!
Mas qual será a pior coisa que me pode acontecer se eu me apaixonar?
1- Gostar de alguém que não se interessa por mim. É mau, mas passa.
2- Gostar de um gajo passado dos carretos. Bem, assim que me apercebesse ponha-o a milhas e ficaria desgostosa.
3- E se fosse correspondida. Aí, era bom e mau, bom porque me iria sentir bem, mau porque não sabia o que fazer.
A verdade é que tinha medo. Era mais fácil negociar com os fornecedores e gerir o restaurante do que mandar nos seus sentimentos. O que a assustava de veras era o facto de se poder descontrolar, de gostar demasiado e ser magoada. Todavia, uma coisa era verdade se ficasse encostada a um canto encolhida com medo e não fosse à luta, então a vida passa por ela, não era magoada, mas também não conhecia nada, nem o bom, nem o mau e muito menos o Amor de alguém. Seria sempre uma mulher incompleta e frustrada.
Seu pai sempre lhe ensinou a ir à luta e orgulhava-se dela por ser corajosa. Contudo, a nível sentimental considerava-se tão inexperiente que parecia um bebé.
Maria decidiu mudar. Com a ajuda de suas amigas comprou roupa nova, mais moderna, mas foi uma luta renhida, porque Maria era tão agarrada ao dinheiro que considerava tudo caro. Foi obrigada pelas amigas a ir à natação para ficar mais “enxuta”. No dia dos seus anos a irmã e o pai ofereceram-lhe uma viagem de avião para Paris, seriam duas semanas de férias em França na casa dos tios, aproveitando para espairecer e conhecer a cidade. Maria ficou radiante.
Em Paris, Maria estava maravilhada, pois encontrava-se numa das cidades mais românticas do mundo. Os primos foram com ela à Torre Eiffel, ao Museu da Cera, à Notre-Dame. Depois outros amigos dos primos juntaram-se ao passeio. Jacques, um amigo do primo era muito simpático e engraçado. Foram visitar o Louvre, o Arco do Triunfo, os campos Elísios, entre outros locais. As duas semanas estavam quase no fim e Jacques levou-a a passear de Barco no rio Sena, foram ao cartier Latim comer num restaurante grego e beberam bem, depois foram ao edifício de escritórios de Jacques ver a vista panorâmica sobre Paris. Maria estava um pouco quentinha e zonza com a bebida e Jacques também, os dois começaram a rir de um disparate que disseram e quando deram por eles estavam sentados no chão lado a lado.
Maria olhou para Jacques e pensou como ele é bonito, caraças. E deu um pequeno suspiro.
Jacques como que adivinhando o pensamento de Maria, aproximou-se e acariciou os seus cabelos ruivos, depois acariciou a sua face e deu-lhe um beijo muito suave nos lábios. Maria estremeceu. Em seguida abraçou-a e começaram a beijar-se com mais avidez. Maria estava tão nervosa…estava finalmente a acontecer. Mas de repente ela pensou que não estava certo, o medo apoderou-se de seu corpo e decidiu parar com aquela cena de beijos que só podiam levar a disparate. E disse: - Pára Jacques, já chega.
Jacques olhou surpreso e perguntou: - Fiz algo errado?! Estou a ir muito depressa ou percebi mal? Eu pensei que estavas tão interessada em mim como eu estou em ti! Possivelmente enganei-me, peço desculpa.
Maria: - Não, não fizeste nada de mal. Sou eu, o problema é meu. Não quero ser magoada sabes?
Jacques: - Não te quero magoar, bolas! Gosto de ti.
Jacques afastou-se um pouco, baixou a cabeça e colocou as mãos nos bolsos, fez uns desenhos no chão com o pé direito como se tivesse distraído e em seguida tirou as mãos dos bolsos e aproximou-se agarrando os ombros de Maria de uma forma brusca. Olhou-a nos olhos e perguntou.
Jacques: Maria, responde-me honestamente por favor, sentes alguma coisa por mim ou não?
Sem saber se deveria falar verdade ou não, Maria engoliu em seco e envergonhada, disse que sim com a cabeça.
Jacques esboçou um largo sorriso e abraçou-a. Jacques disse: Tudo bem, vamos com calma. Pode ser assim?
Maria concordou.
Jacques pediu-lhe: Maria fica mais duas semanas, por favor.
Maria negou com a cabeça: Não posso, há muito trabalho no restaurante, é necessário que eu lá esteja.
Jacques: Sim, eu sei, mas o trabalho não foge. E se tu estivesses doente o restaurante não funcionava?
Maria: Claro que sim, mas, exige responsabilidade.
Jacques insistiu: Maria, por favor, fica. Precisamos de nos conhecer melhor e se tu fores o que poderia existir, a hipótese de ter algo bom contigo nunca se realizará. Estamos em países diferentes. Fica são só duas semanas.
Maria: Eu vou ver o que posso fazer!
E ficaram abraçados a admirar a vista panorâmica de Paris à noite.
Maria falou com o pai e com os tios e decidiu ficar mais duas semanas.
Deu a notícia a Jacques e este ficou muito satisfeito, comentado que Maria tinha tomado a decisão certa.
Passearam os dois juntos de mão dada pelos campos Elísios, trocando carinhos, brincadeiras e risos. Durante alguns dias deambularam pela cidade como namorados. Até que no fim da primeira semana Jacques convidou-a para um jantar
romântico em sua casa. Após o jantar foram para a sala ouvir música e dançar, enquanto isso começaram a beijar-se devagar, depois mais intensamente, até que pararam de dançar e deitaram-se no sofá. Maria deu um beijo no nariz de Jacques, depois no olho direito e no esquerdo, percorreu a cara com pequenos beijinhos desde a testa até ao queixo e depois beijou-o na boca para em seguida continuar com pequenos beijos até à testa, voltando novamente à boca, contando os beijos que dava (contou até 10). Em seguida brincou com as orelhas, com pequenas lambidelas e Jacques ria, pois fazia uma certa impressão. Depois fizeram amor. Durante a última semana namoraram e amaram-se, até que Maria teve que regressar a casa.
Mantiveram o contacto por carta e telefone. Certo dia, Jacques teve uma oferta de trabalho para o Japão, e a partir daí os contactos passaram a ser mais escassos. Maria considerou que um namoro à distância não ia dar em certo e resolveu manter a amizade, mas seguir a sua vida sem Jacques. Porém, uma outra Maria nasceu.

(Carmo Costa)