segunda-feira, 19 de outubro de 2009

PRIMEIRA PUBLICAÇÃO



Primeira obra da nossa personagem que foi publicada este mês na colectânea Literatum & Poeticum, da Editora Guemanisse, em Teresópolis, Brasil. Aqui transcrevemos como está patente na página 201.










Scott Johnsonn





A publicação deste conto é a estreia mundial do autor.

Scott Johnsonn foi descoberto num bar de Lisboa. Trata-se de uma estranha personagem que só conhece o mundo através da literatura e só por ela consegue se expressar. Sua vida singular está a ser contada num romance escrito em criação colectiva numa experiência literária que engloba várias línguas e linguagens.

Para mais informação: manedocafe@gmail.com
















Round 3





A Negra

A campainha soou. Saiu da letargia com os olhos ainda fitos no ecrã que exibia, entre chuviscos e ondulações, os movimentos de sempre de mais um intervalo. E era só o que conseguia ver, pois quando se anunciava o ‘Segundos fora!’ mesmo que os olhos não cerrassem, abstinham-se do marasmo de tantos clinches e sonhavam com lutas de outrora, quando os socos não valiam tantos milhões e, muitas vezes à borla, eram distribuídos entre gingas, esquivas e passos de dança. Mais valia ter feito como costumava fazer: deixar-se ficar sentado a olhar o ringue e, aí sim, imaginar os combates de sonho sem a interferência da campainha e o cansaço dos chuviscos. Assim fazia cada vez mais amiúde e, se a imaginação falhava, havia o recurso à lembrança que, apesar da idade, era de fácil acesso pois ali vivera a maior parte da sua vida e ainda vive. E viveu momentos inesquecíveis.
Por ali chegou ainda rapazote na função de zelador. Com o passar do tempo foi acumulando muitas mais. Foi roupeiro, auxiliar de treinador, massagista, enfermeiro de urgência, técnico de manutenção dos aparelhos, só não foi treinador nem lutador, apesar de ter servido de sparring em algumas ocasiões, e fora também vigia noturno quando, por muitos anos, manteve o seu catre num canto esconso. Com o passar do tempo foi desacumulando as funções e hoje, já reformado, é o zelador.
As pancadas na porta suplantaram a mesmice do combate, o hipnótico chuvisco e o abanar exagerado das toalhas como se os contendores houvessem feito alguma coisa para suarem. Procurou andar mais depressa enquanto as pancadas insistiam. “Lá se foi mais um!” Na sua idade, notícias àquelas horas… “Já vai!” …só podiam ser más. “Na semana passada foi o Strudy, do armazém!” Antes do ‘quem é?’, olha pela viseira da porta. A pouca luz que a Câmara oferecia às ruas daquele bairro só deixava ver uma silhueta. A voz fez-se reconhecer e o seu coração bateu vida ao rever os flashes de quando aquele corpo parecia ser apenas silhueta a bailar como que sem o recheio de um peso pesado. O amolecido coração exultava de alegria, mas a voz não podia denunciar. Havia que ser dura para preservar a precária pensão. “Pegou-me no contra-pé! Já não tenho mais para emprestar! Aliás…”
- Velho maroto! – a sombra vira-se para a outra sombra – Viu como recebe um campeão?! Com cobrança! – torna ao velho - Eu não me esqueci… logo logo eu pago aquela guita!
- Quem está aí contigo? – prepara-se para passar uma reprimenda – Joe. Você sabe que não quero estranhos cá em casa!
A outra sombra projectou-se vagarosamente até à luz do cómodo.
Dois campeões era demais.
- Max!
- Reconhece-me! Como é possível!?
- Nunca esqueceria essa cara. Com essas sombracelhas… Entrem! – o anfitrião desfaz-se em apressados zelos – Tenho cá uma pinga… Não tenho Coca-cola não, Max… algures um queijo… sentem-se! …que ainda não mofou! Digam… Max, Joe; Joe, Max!!!
- Não queremos nada. Nem temos tempo para muito…
- Ele não pode perder o último comboio. Temos que andar depressa!
Se só o inusitado de estarem no seu quartinho seus dois maiores ídolos já quase lhe dava um badagaio, pior foi quando anunciaram a que vinham.
- Você tem a chave do ginásio?

Pelo caminho acordaram que o combate teria três rounds de três minutos por um de descanso. Ele entrega uma corda para cada um.
- Façam um bom aquecimento porque se a luta for morta, eu durmo.
- Pode dormir à vontade. Não o acordaremos. Batemos a porta ao sair.
- Dormir por dormir, preferia que fosse na minha poltroninha!
- Ele não pode dormir, não! Quem vai soar a campainha?!
- Tás a ver!? Façam como as raparigas. Já viram luta de raparigas? São animadíssimas!

Digeta-digeta… lept lept lept lept… digeta-digeta… tras tras tras… lept lept… tum – Aiiii…







Aquecimento

Parecia um sonho, estar ali a assistir a duas crianças a se prepararem para começar uma brincadeira sem nenhuma diferença entre elas e sem deixar que tanta igualdade atrapalhasse o intento. Sim, porque do alto dos seus oitenta anos, ele já sabia que o que se discrimina na diferença é o que de igual se repara no outro. Mas não era com filosofia que ele aguardava até que os dois estivessem preparados para a luta, era com história. A história que ele ajudou a escrever. Não que essa função fizesse parte das tantas que exercera para o clube. Não, essa ele a fez por conta própria, gastando muito do próprio bolso para poder presenciar os grandes momentos, comprar livros e fazer pesquisas e levantamentos históricos. Até aprendeu taquigrafia para não perder os depoimentos que, muitas vezes, eram mais interessantes que o próprio evento e assim, escrever para o mural do ginásio um pouco da história do boxe. Como aqueles dois já envelhecidos atletas que tanta tinta fizeram correr nos dois lados do mundo, o de dentro e o de fora. Escreveram com sangue, suor e lágrimas numa altura em que o de dentro não tinha a aceitação de todos, enquanto que o de fora era tido como o salvador da pátria branca, pois branca era a Revolução Industrial que aportou na América acabando com a Escravatura mas não com a escravidão de homens, mulheres e crianças de qualquer cor que se lhes atribuísse. E, quando as máquinas se multiplicaram fordianamente em corporações mastigando e minguando a individualidade e a auto-suficiência do homem da classe média, fazendo com que se procurasse a afirmação nos esportes viris, o boxe serviu como uma luva para espelhar a supremacia do macho dominante nacionalista branco.
Enquanto ele ouvia os embaladores ruídos dos aparelhos, a sua mente era levada para um tempo tão longe, mas tão longe, que parecia ontem. Tempo em que o campeão John L. Sullivan afirmava, de boca cheia, que não lutava com os ‘niggers’ e Jim Jeffries sustentava, de pés juntos, que quando não houvesse mais branco para lutar ele deixaria o boxe para não dar oportunidade de perder o campeonato para um negro. Um tempo em que quando o campeão mundial passou a ser um canadiano ninguém se lastimou tanto quanto quando o título atravessou novamente a fronteira e foi para as mãos de um negro fazendo com que os brancos se mobilizassem rapidamente, apelando para tudo, até que conseguiram fazer com que o Jim Jeffries voltasse a lutar para lavar a alma da branquitude. Caramba! Até o Jack London, escritor de quem ele tanto gostava, andou dizendo que lamentava pois, afinal de contas, o outro era branco. Até deixou de ler os romances desse escritor. Por um tempo ainda conjecturou. “Se fosse ao contrário eu, com certeza, torceria para o canadiano.” Mas… porém… contudo… todavia… “se a questão era de afirmação… e a raça branca queria afirmar a sua supremacia conquistada com armas, subterfúgios, intrigas, religião, tratados rompidos e palavras quebradas… assim, nós queríamos afirmar a igualdade.” Como quando o índio Pés Ligeiros ganhou as medalhas olímpicas e apesar de lhas tirarem… Bah! Isso já cheirava a ranço. Voltou a ler Jack London. Os negros bem precisavam de uma grande reviravolta para além de terem um campeão. Assim como uns os viam sem alma, outros os viam como idiotas, como a vice presidente do Clube das Mulheres da Califórnia que disse que povo negro é uma raça infantil, que precisa de direcção, instrução e encorajamento e a raça superior nega aos negros todas essas coisas quando os levam enganosamente a acreditar que um campeão negro seja significativo para a raça. Isso para justificar a proibição da exibição do filme em que mostrava a malograda tentativa do reactivado Jim Jeffries recolocar o negro no seu devido lugar. Meu Deus, que luta! A grande esperança branca foi feita de bobo por Johnson que durante 14 rounds, zombou, troçou e riu do oponente para derrotá-lo no 15º assalto chocando a maioria das 90 milhões de atenções que se voltavam para Reno e nocauteando também o senador de Nova Yorque. Ele não lembra direito do nome do senador, “Tim…” não sabe o quê que, ao se recuperar do desmaio, exprimiu a frustração e decepção da população branca que reagiu violentamente contra os negros por todo o país. Ah, mas como ele se lembra bem do campeão Jack Johnson. Campeão dos pretos, claro. “Pretinho sem-vergonha!” Debochava dos brancos dentro e fora das cordas. Até namorava mulheres brancas publicamente e dava a elas presentes e dinheiro. Foi aí que tramaram o campeão. Ele nem quis acreditar quando soube da sua prisão só porque passou uma fronteira estadual com uma namorada e foi acusado de violar o Mann Act, uma lei criada para combater a escravidão e a prostituição branca. Mas o que queriam mesmo era verem-se livres dele tanto que as mesmas autoridades que o prenderam estimularam-no a fugir dos Estados Unidos. Johnson passou a ser o campeão exilado até perder o título mundial para Jess Willard, em Havana. “Lá em Cuba!”
- Vai uma aguinha?
- Não. Para não arrefecer.
- Uma massagem até que vai bem!
- Já estou velho pra isso. Vão ter que fazer um no outro.
Ele imaginava que, das duas uma, ou seria um festival de risada ou uma grande seca aqueles três assaltos. Não se importava, pois o que os olhos vissem não apagariam as lembranças das duas primeiras e únicas lutas dos seus dois ídolos. Assim como os gemidos nos alongamentos dos dois enferrujados não atrapalharam a visão da luta do primeiro campeão negro com o ‘representante eleito’… como disse o sacana do Jack London.

Round 1

Levou os dois ao centro do ringue e pediu que no intervalo, os dois se dirigissem para o mesmo corner, a fim de lhe facilitarem o atendimento na única tarefa que lhe cabia nesse embate sem árbitro, para além de fazer soar a campainha.
Posicionou os dois banquinhos, a toalha, o balde, o estojo e soou a campainha.
Ele repara que o Max ainda mantém um porte atlético e pensa “É o que faz o dinheiro!” e lembra de quando o lutador alemão desceu do navio debaixo de uma ovação que parecia que a multidão estava ali para receber um herói do Olimpo. Mas era só esperança, pois que ninguém acreditava que o estrangeiro pudesse ganhar. Hitler tinha esperança. Quase todos os Estados Unidos esperavam. Mas nem os críticos, nem os cientistas do boxe por mais que esperassem e até apostassem, não acreditavam numa vitória de Max Schmeling, o salvador que veio de longe. Nem os pretos, sobre quem a esperança fez morada, acreditavam que um branco vindo das estranjas pudesse abalar a carreira daquele que despontava como um dos maiores pugilistas até então e que tinha tudo para ser mais um campeão negro, duas décadas depois de Jack Johnson. Ele também estava lá. Mas apenas para fazer a cobertura do acontecimento que até ao início do combate ele tinha como favas contadas.
O resultado final não foi surpresa para ele. Depois de dois minutos de luta ele percebeu que o danado do alemão conhecia o caminho para a vitória. “Acho que ele era a única pessoa sobre a terra que sabia que podia ganhar, que depois de uma série de golpes Joe Louis abaixava o punho esquerdo. O sacana descobriu isso logo logo!” Quando Joe foi à lona pela primeira vez, o Yankee Stadium começou a vibrar com o impensável e no 12º round, até quem tinha perdido dinheiro, ficou alucinado e o visitante não entendeu nada quando viu serem disputados como souvenir até pedaços das suas ataduras. Mais que herói, o ‘elegante, inteligente e bonito’, virou um deus. O alívio não foi só para os americanos que temiam a eminência de terem mais um campeão peso pesado que não fosse branco. Também Hitler ficou tão contente que fez vista grossa pelo facto de Max não querer se filiar ao partido e obrigou que se projectasse o filme da luta em toda a Alemanha.

Intervalo

Ele passa a toalha na cara dos dois, que nem ficaram muito magoadas e vai lembrando da tristeza que foi ver o seu ídolo beijar a lona. Mas isso não impediu que Joe continuasse a sua trajectória até ao cinturão, o que aconteceu um ano depois contra o Cinderela Man. “Eu até gostava daquele branquelo. Um branco com alma preta! Eh eh!”

Round 2

“É! Mas o Hitler meteu os pés pelas mãos!” Pensava ele sem ligar muito aos dois sobre o tablado. “Começou a querer saber a cor das almas de toda a gente.” E quando o Max veio para novo combate, a multidão que o esperava, estava lá para achincalhar o rapaz e xingar o desafiante do campeão, de nazista para baixo. “Até ‘filho da puta’ eu escutei.” Mas ele não estava lá para isso, ainda mais porque, lá no fundo nutria uma certa admiração pelo lutador alemão. A mesma que nutria pelos grandes atletas. Agora, era o preto que subia ao ringue com a missão de salvar a Pátria. O próprio presidente, pessoalmente, endossou a querença de todo o povo americano.
Os dois pesos pesados começam a atrair a sua atenção. “Como pode uma coisa dessas!?…” Os contendores ganharam peso mas não perderam a destreza. Passou a apreciar melhor o combate deixando as lembranças para trás. Também, não havia muito que lembrar. A revanche durou apenas 124 segundos. E Joe Louis completou a tarefa que Jessie Owen e outros atletas negros iniciaram na Olimpíada de Berlin, ao fazerem o Fuhrer dizer que ia cagar e sair do estádio. “Fiquei com pena do Max. Se bem que acho que ele… Deus me livre de pensar uma coisa dessas! Mas acho que ele se deixou bater, só para sacanear o Hitler.”

Intervalo

Merecem um tratamento especial pelo que fizeram. Havia que ser rápido pois ambos sangravam muito. “Supercílios!” A toalha era uma só. Mas esses dois há muito já combinaram o sangue e os odores. “Podem dizer que são irmãos de sangue.” As lágrimas choraram-nas cada qual para o seu canto. Joe Louis, apesar de comportado e de contribuir para o esforço de guerra doando algum cachet. “Mesmo assim foi tramado!” Pelo Estado, pela vida e pelas coisas que têm. Cocaína, traições, doenças, ladroagem, Fisco e memória curta. Quanto ao Max, o chefe supremo dos nazistas fez-lhe vida… negra, o que levou a sua família à miséria.

Round 3

Mal começou, os curativos cederam. Mas o sangue não impediu que se degladiassem acirradamente. Os pensamentos lhe vinham em turbilhão. A Coca-cola depois da guerra recrutou o Max para garoto propaganda e ele via um subir enquanto o outro descia cada vez mais. Ele não acreditava no que os jornalistas diziam... que os dois não se gramavam e até que se odiavam. Não. Eram só dois atletas que cumpriam as suas missões que não tinham nada a ver com nada daquilo. Tinha a ver com outra coisa que poucos têm o dom de conhecer. Ah, como foi bonito saber que o amigo que se aprumou na vida foi visitar o carenciado. “Eu não disse!?” E foi mais de uma vez. Visitava e ajudava. Na calada, mandava dinheiro… “e aposto que se o amigo indigente morrer primeiro o outro não o deixará ir para a cova rasa.” Ele nunca vira uma amizade assim.
Pensa em atirar a toalha e declarar um empate técnico. Mas ele não estava ali como juiz. Os dois podiam não aceitar ou talvez nem reparassem no sinal de tão renhida que estava a luta. Ele desiste da ideia de parar o combate. Desiste das lembranças. E fica só com o seu pensamento. “Eu assisti ao maior espectáculo da vida! Já posso morrer!”
Os dois amigos começam a cansar e a luta parece estar muito arrastada, demorada… a campainha não soou.

Fim


Referência:
Joe Louis vs. Max Schmeling and the new ideology of racial democracy in the USA, de Jessica Grahan

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Clarinetes e lendas

O som ímpar de um clarinete em terras árabes


Ao ver a placa Johnsonn abrandou o carro: Cacela-Velha. Era aqui que lhe tinham dito para virar. Estava desconfiado; além de Vila Real, que tinha um centro realmente bonito, só lhe tinham mostrado aldeamentos: aldeias novas “para inglês ver”. Ora, Johnsonn não era inglês e não queria ver casas com motivos estilizados nem arranha-céus em avenidas junto ao mar.
Ao aproximar-se do pequeno aglomerado caiado parou o carro e desceu. Havia duas ruas. Decidiu seguir a direito e foi dar a um largo com uma igreja, por detrás da qual se via um forte. Em frente havia apenas o mar, estava no alto de uma muralha sobre um braço de mar que formava uma península — o fim da Ria Formosa.
Uma suave, mas fresca maresia não o deixou deter-se muito tempo. Virou-se de novo para terra e decidiu explorar o largo à direita e as ruelas de nome árabe, homenagem recente aos poetas da terra (e quem, vivendo em Cacela não se tornaria poeta?), ouviu ao longe um clarinete. Naquele cenário nunca imaginou ouvir tal som e no entanto os harmónicos ímpares têm um timbre inconfundível.
Através de uma janela aberta ouvia-se alguém que ensaiava. Johnsonn não resistiu a bater à porta, aquele som familiar trazia-lhe saudades do avô; e curiosamente, este clarinetista tirava do clarinete em si bemol um timbre muito semelhante ao do velho Johannes. Johnsonn não sabia muito de música, apenas o suficiente para saber que o som de cada instrumentista é único, feito de uma cumplicidade construída ao longo de muitos anos com o seu instrumento.
À janela veio um homem louro, alto, de meia idade. Com pronúncia acentuada, perguntou-lhe quem era. Johnsonn respondeu-lhe em inglês que não falava português. Postos de acordo sobre a língua, um com sotaque britânico e o outro norte-americano, Johnsonn contou-lhe que reconhecera a sonoridade característica do seu avô Johannes. O homem apresentou-se: “Alastair Tilley, fui aluno e colega do seu avô. Se reconheceu o som dele na minha forma de tocar, então é o maior elogio que alguma vez me fizeram!”
Alastair convidou Scott a entrar e ofereceu-lhe um chá fresco. Contou-lhe que tocara em Nova Iorque, na Filarmónica e de como depois dos concertos percorria os bares de jazz da cidade com Johannes. Lembrava-se de Scott pequenino quando aparecia nos ensaios pela mão do avô. Depois da reforma Alastair instalou-se em Cacela, onde se ouvia o mar, o vento, as cigarras, os grilos, as andorinhas — em noites de lua cheia o choro das mouras encantadas presas no poço do castelo — e agora os clarinetes. Ficaram toda a noite a relembrar velhas histórias de Nova Iorque. No dia seguinte Scott tinha previsto ir a Tavira, de cuja beleza ouvira maravilhas.

Acordaram tarde. Meteram-se na velha carrinha de Alastair e rumaram à cidade. Ainda em jejum subiram a colina em direcção ao castelo. Depararam-se a meio do percurso com o Museu, onde a sombra do pátio interior convidava ao almoço. Atravessaram o patamar sobre os poços fenícios cobertos com vidros e nem quiseram pensar que rituais teriam ali sido praticados.
Enquanto se deliciavam a conversa fluía novamente. Quem seriam estes fenícios e como seria bela a Tavira de então. Um povoado à beira rio, o mar ao largo, suave e quieto, entre ilhas, dunas e canais. Só do outro lado da ria havia ondas e correntes fortes. Atravessados os areais, a serra ao longe, um rio largo, peixe em abundância e terras férteis. Uma colina como um varandim sobre a paisagem (e sobre quem tentasse aproximar-se). Em suma, o Paraíso!

Continuaram depois a subida. Do castelo-jardim vê-se tudo em redor. Ao perto dezenas de igrejas e pontiagudas quatro-águas em contraste com as paredes alvas. Mesmo em baixo o jardim à beira do Gilão, entre o mercado e a Câmara Municipal.
Encavalitado na muralha mesmo por cima da igreja de Santiago, Alastair abriu o estojo do clarinete baixo e começou a montá-lo, peça por peça. Ali do alto, com a ressonância das muralhas em redor, os graves cantavam docemente. O som quente envolvia o jogo das crianças no jardim e o ruído dos carros deixou de se ouvir.
Começou por Beethoven, para a amada... ao longe..., o clarinete era um jovem cheio de saudades, amado e apaixonado, num lamento murmurado e doce.
Depois animaram-se. Se as saudades apertam, o ondulado do chorinho tira-lhes o peso. Ao som do exotismo brasileiro, de melodias volteadas e contra-tempos sensuais, um véu azul esvoaçou sobre ambos. Do alto da torre uma sombra de mulher ondulava, visível mas transparente...
Alastair parou de tocar e subiram à torre. Deram a volta até à escada tortuosa de tão pisada, mas como em todas as histórias de mouras encantadas, encontraram apenas o véu e um leve odor a laranjeira e almíscar. Dali avista-se Espanha, o Califado de Córdova. Mais longe, do outro lado do mar, a terra longínqua dos seus antepassados. Sempre que podia ela voltava para olhar o magnífico espectáculo e estas gentes louras que agora apareciam, como gostaria de falar-lhes...

A tarde passou-se entre vielas, ruínas, palácios soterrados, igrejas e mais igrejas... “Muitas igrejas há nesta cidade!” disse Scott. “Parece aqui perdida no reino dos Algarves, mas deve ter sido um centro religioso de importância.” “Seriam algumas mesquitas convertidas”, respondeu Alastair. “Na realidade toda essa cultura foi esquecida até há pouco tempo — só agora se estudam com afinco esses poetas e a riquíssima cultura que essas gentes trouxeram. O povo, claro, sabia-o nas suas alpergatas ou nos albericoques do estio. O povo sabe sempre mais do que quem vê o mundo pela janela do palácio.”

Scott sabia que no dia seguinte partiria de regresso a Nova Iorque. Tinha passado o dia com o avô, mais perto do que alguma vez se sentira desde a sua morte e tinha encontrado em Alastair um amigo.

Quando a luz se tornou alaranjada nas fachadas desceram à praça do Al-Mashrad, o teatro. Não resistiram a entrar na pequena livraria. Pela travessa passaram ao mercado, onde jantaram junto ao rio.
Mais uma vez vieram à baila as orquestras e os bares nas caves nova-iorquinas. O maestro que melava tudo, até Mozart: “always legato”... Um outro, já meio surdo, que nem reparava se a orquestra não estava toda junta. Ah! Mas quando vinham os mestres dirigir, que delicia! Que maravilha suprema... fosse qual fosse o programa...
Depois dos concertos fugiam para as catacumbas do jazz. Uma nota ao lado, um engano e quantas vezes nascia daí nova moda. A risota e a pura diversão, o prazer de tocar com os amigos, a genuína partilha sem direcção nem partitura.

O restaurante fechou e a conversa parecia não terminar. Continuaram sob a lua sentados num banco da ponte romana, a meio do Gilão a olhar Tavira adormecida.
Manhã clara, de volta a Cacela, Scott pegou no seu carro e tomou a direcção do barlavento rumo ao aeroporto. Do avião viu as dunas e as cidades brancas do velho Al-Gharb, sentia-se confortado como uma criança e adormeceu. Desde que o avô morrera não pensara poder voltar a sentir-se tão próximo.

(Helena Romão)