segunda-feira, 13 de julho de 2009

Sem título

Scott Johnssonn. Mais parece nome de sueco, que eles é que dobram os ennes, à brava. Mas não sei se é o mesmo fulano que encontrei por breve período no metro de Paris. Eu costumava passar regularmente na Bastille a deleitar-me por algum tempo com a música do Damian, um americano, que ali tocava o seu contrabaixo todos os dias entre as 3 e as 6 da tarde, o que lhe permitia treinar e ganhar algum ao mesmo tempo. O Damian era razoavelmente conhecido como músico do outro lado do Atlântico, mas vivia agora em Paris, desconhecido e quase pobre (tocava 2 vezes por semana num barzeco de mais ou menos jazz ali ao pé das Halles), numa chambre de bonne do 17ème.
Uma tarde dou com ele acompanhado por um branquelo – era o Scott Johnssonn--cantando velhos blues, e o conjunto fazia arrepiar a pele todinha até dos franceses mais renitentes. Durante uma semana, foi assim: um tocava, o outro cantava, o pessoal juntava-se e não despegava, entabulavam-se conversas, relações, flirts, paixões, e só desandavam dali quando o Damian dizia: that’s all, folks. Isto depois do Scott cantar “Dry your eyes” (se querem explicações, peçam) -- dizia ele que era “a melhor coisinha que o Neil Diamond escreveu”.
Primeiro pensei que o Scott era cantor, mas logo me desenganou. “Eu sou mesmo é escritor. Cantar é um gosto secreto que apenas exerço quando estou longe de mim.” Não me perguntem o que isso significa, também não sei, ele não explicou, acho que era uma frase de escritor.
Durante essa semana quando saíamos do metro, íamos comer num africano meio escondido ali para os lados de Guy Môquet e por lá ficávamos até tardias horas entre música e histórias de todo o mundo, assim um bocado como no Tejo Bar. E foi numa dessas noites que o Johnssonn nos fez um relato, afirmou ele que palavra por palavra o que lhe fora contado em herero, mas eu cá por mim acho que ele é que escritou (não tenho mesmo jeito nenhum, aqui precisava do Mia Couto para ele inventar a palavra certa) na hora. E digo isto porque herero era língua que ele não falava. Reproduzo a partir da gravação feita pela Khadi, pois tanto quanto sei é exemplar único da prosa do escritor:
“este é o meu lugar. na ágora. embora não o saibam os que aqui passam os dias, nem os que só passam. de todos escorregam por mim os olhares, detendo-se uma infinita fracção de segundo nos meus pés. lindos os meus pés, grandes, esguios, elegantes, nem parece que já andaram tanto, tanto. tanto que encontraram este lugar, o exacto lugar para eles. poisaram-se num degrau e eu neles. tornam este lugar mais belo, são como uma escultura que ilumina a ágora. por aqui a meus pés passa o mundo, o mesmo por onde eu passei. gentes de todas as partidas. falam, acenam, riem, choram, dançam, por vezes um par passa enamorado. soube o que isso é. meus pés já tocaram outros pés apaixonadamente. há muito, muito tempo, lá muito longe. esqueci. o amor esquece-nos e nós a ele. depois outros pés vieram batendo a terra, mais infernais que um batuque. lançaram-se contra os meus, pregaram-nos à terra, foi aí que toda eu entrei neles adentro. adormeci. depois (horas? dias?), puseram-se a caminho. mato, mato, mar, barco, mar, mar, mar, mar, mar, terra, mato, mato, gente. ágora. menos mal: pés de todas as cores, tamanhos e feitios. estancaram, pesados. esqueci tudo. o amor, a morte, o rapto, os mexericos, a melhor amiga, o tempo, as faltas, o riso, o choro. ficaram só palavras para dentro dos pés. agora, neste momento mesminho, seus pés se pousaram diante dos meus, face a face dos pés, reconheci, bonito, sim, nossos pés humanos nos degraus. por isso estou contando o que esqueci. esvazio-me. finalmente. estão-me morrendo os pés. vai.”
E penso que ele foi.
(Grace Nazaré)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Poesia em Scott Johnsonn


Valeu a perspicácia do Tito Pires para descobrir naquele texto corrido um rítmo de poema.
Mais que a descoberta e o profundo conhecimento do idioma, valeu a coragem do poeta arrojado que ele é, para meter-se numa tradução-versão-quase-um-original.

(Organização)

Quando o Mundo ruiu ficamos entregues ao abrigo de uma música


Tenho uma garrafa para beber
Um poema para escrever
Uma canção para acabar
Qual destes me tomará primeiro?
Sem a garrafa não conseguirei escrever
Sem escrever não consigo compor
E o álcool já não me deixa tocar…


No meio de nós está um suplício no chão
Um suplício a arder
Guiamos sem ver
Iremos em contra-mão?


Sonhar não chega e é perigoso!
Luta-se porque é um sonho e temos que tentar,
Mesmo inconscientes de que não vamos conseguir concretizar.
Iludimo-nos muito e isso magoa.
Nem é o talento que define o sucesso…
Pode ser um meio entre tantos que não nos levam a parte nenhuma!
E se o acaso acontecer
É bom ter algo para mostrar.
Por isso luto… pelo acaso…
E o sonho evolui… sonha-se cada vez mais,
Mas o acaso não vem e isso dói
Porque trabalhei e merecia,
Mas não chega…
O acaso não avalia, acontece!


Mal ou bem organizadas,
As coisas estão organizadas


Enquanto durmo sossegado nesta rua
Um homem mata,
O Mundo gira…


Talvez seja bom este pesadelo,
Se o acaso o tornar maravilhoso!

(Tito Pires, a partir de original de Scott Johsonn)

O Escaparate do Changuito

Como se não bastasse toda a poesia intremeada nessa brincadeira literária, ainda aparacem esses poemas que o Tito Pires descobriu justificando ainda mais a delicadeza do Changuito que de ante-mão oferecera um lugarzinho nas suas estantes mesmo sendo elas preferencialmente para assentar poesia.



Livraria Poesia Incompleta
Rua Cecílio de Sousa, 11, Lisboa
Segunda a sábado, das 10 às 19.45
mail: poesia.incompleta@gmail.com
Telefone: 00 351 96 000 53 60 ou 213047583
Skype: poesia.incompleta

Por culpa do Bookcrossing



E não só. Também de quem fez a arrumação da casa. Em última instância, da gerência que não atinou para as coisas fora de lugar. Ou não seria o Tejo bar.
Foi nessa sucessão de erros e culpas que todo o original da obra do Scott Johnsonn, foi parar à estante dos livros grátis do Bookcrossing.
Só se deu fé do desaparecimento dos volumes dois dias após a grande festa de despedida dos estudante do Erasmus.
Os volumes foram encadernados pela Vera numa verdadeira obra de arte, pela beleza como pela practicidade e resistência no manuseio. Explica a autora que tão diversificado resultado deu-se pela falta de material. Teve que improvisar pois não havia um tostão para o trabalho.
Os belos exemplares tanto por fora quanto por dentro não tinham a etiqueta do Boocrossing com o número de registo que permite fazer o rastreio global através da Internet.



Só por muita sorte algum desses volumes tornará a casa. Teme-se que aquele inglês tão artisticamente apurado tenha se perdido para sempre. Restam as traduções feitas por tantas pessoas dedicadas e o consolo de, como diz a Isabel, acreditarmos que tão belas páginas andam soltas por aí.


(Organização)

O rio, ou de um encontro no Tejo



Seria início da Primavera, a tarde ia já escura, o rio corria cheio. Dentro de meia hora, começava uma sessão do curso/grupo de psicodrama. Nem só ensino, mas não ainda terapia. Uma das coisas meio loucas em que me meto, por amor aos grupos. “Se Cristo voltar à Terra, será na forma de um grupo”, disse o J.L. Este, cuja quarta sessão começava daí a pouco, era um grupo sui generis, só de mulheres, por um lado cheias de vontade de “mergulhar” nessas técnicas psicodramáticas, metade da psicologia metade do teatro, mas por outro temerosas com a exposição pessoal que isso poderia trazer. Claramente, urgia uma sessão diferente, marcante, verdadeira, para que aquele conjunto de pessoas se transforma-se num verdadeiro todo, superasse as resistências, se permitisse confiar e fluir. O que fazer?

Aproximei-me do cais, brincando com os limites do passeio, deixando que parte do meu pé ficasse suspenso no vazio, com o rio em baixo. Era um hábito, quase um tique, ou mesmo uma superstição: “Se te arriscas, a inspiração vem e salva-te!”. Fechei os olhos, abri o corpo às sensações e imagens que vinham do rio que fluía lento abaixo de meus pés.

Apanhei um pequeno susto, um sobressalto, no momento seguinte, que quase me fez desequilibrar. Senti que não estava só. Ao meu lado direito, a poucos passos de mim, um vulto, da minha estatura, parecia emular os meus ligeiros movimentos. Fiquei momentaneamente confundido, sem perceber se se tratava de uma ilusão de óptica, de um reflexo, de um efeito do lusco-fusco, ou de uma visão da morte, como se ela adivinhasse em mim um intento de mergulho. Talvez fruto das minhas leituras recentes sobre a angústia de morte? Tudo isto me passou pela mente naquela fracção de segundo que mediou entre a percepção daquele fantasma e o dar-me conta de que era, afinal, um homem, de carne e osso, que confirmou a sua materialidade grunhindo uns gemidos ininteligíveis, guturais, mistura de voz humana e instrumento de sopro, com um não-sei-quê de antigo, de velho, de bafiento.

Do susto, passei de imediato para uma sensação de angústia, de temor, antecipando um mergulho daquele sujeito no rio (curioso, escrevendo estas linhas recordo agora que parecia mais ser o rio a querer lançar-se sobre o homem…). Sem me aperceber, gritei, um grito que se projectou como um braço sobre o peito dele. Também ele se assustou, não me tinha visto. Estava claramente perturbado, um esgar de ausência, ou melhor, uma expressão de quem acabava de chegar de um outro mundo. Estrangeiro, claramente estrangeiro. Avancei para ele, não consigo lembrar-me do que disse, mas soube que não ia deixá-lo ficar sozinho. Entabulamos uma curta troca de palavras, chamava-se Scott, era escritor, o português dele confirmava o seu aspecto, apercebeu-se de que eu temi pela sua vida. Recordo-me que afirmou que tinha estado essa tarde com um angolano, escritor também ele, que tinha ficado com a mesma cara que viu em mim: a da proximidade da morte.

O tempo passava, as alunas esperavam-me, Scott não podia ficar só. “Queres vir comigo a uma aula?”. “What?”, respondeu. “Vem comigo, vou dar uma aula sobre uma forma de trabalho com grupos chamada psicodrama, não podes não gostar. Ainda por cima, vais conhecer nove mulheres giríssimas, vamos contar histórias e talvez dramatizar alguma, quem sabe, a tua?” Eu próprio não acreditava que estava a dizer aquilo, que situação mais absurda, levar um desconhecido, perturbado, para uma aula, sem aviso prévio. Mas tampouco podia deixar de o fazer, tinha a clara sensação de que estava a fazer o que tinha de ser feito. Scott nada perguntou, simplesmente começou a caminhar como se fosse ele a guiar-me para a faculdade onde a sessão decorreria.

Já durante o caminho, de pouco mais de uma centena de metros, até à escola, notei como se transformava aquele homem. Eram os olhos, o olhar, que parecia começar a projectar histórias, como se a vida de súbito encontrasse uma canal e se desmultiplicasse em narrativas possíveis. E tudo isto, num quasí-silêncio, quebrado aqui e ali por uns nomes e palavras soltas, em inglês, e por uns sorrisos que me dirigia. Quando paramos, para atravessar a última rua, encostou o seu ombro ao meu, como se me tirasse as medidas e confirmasse que poderíamos trocar de roupas, se precisássemos. Eu, mais do que preocupado, começava agora a estar fascinado. Levava para a sessão um personagem, um autêntico personagem. Levaria também o autor?

Atravessei os corredores da escola, labirínticos, e mais de um olhar se voltou, efeito da presença daquele ser, que tanto poderia ser um convidado de honra, com todos os PhDs e Cum Laudes do mundo, como um refugiado a pedir asilo político. Ou asilo emocional, que algo cheirava nele a cachorrinho órfão de pai e mãe e irmãos. A minha mente esforçava-se por encontrar uma linha coerente para organizar as duas próximas horas da minha – das nossas? – vidas, mas já subindo o último lanço de escadas decidi seguir a lição mais importante que me deixou o Sr. Francisco (diz-se da Holanda, mas a sua geografia é demasiado sinuosa para ser suportada por tão plano país): “Aja duas vezes antes de pensar”. Deixei a mente então a trabalhar em ponto morto, e passei à interacção, as alunas esperavam-me já, quase todas, e Scott foi, ao entrar na sala, o foco de todas as atenções. Entramos e começamos a afastar as mesas, fazendo um círculo com 11 cadeiras. “Team di futibol?”, disse ele, e depois de um curto e espontâneo sorriso sedutor, caiu a pique numa tristeza que, de tão triste, invocou a criança abandonada de todos quantos ali estávamos, naquela roda.

Não tive tempo nem para as apresentações, que, de facto, eram desnecessárias. Estava ali um homem. Ponto. Era, todos os demais sabíamos, o que nos tinha faltado nas sessões anteriores. E não era o género masculino, não, o que estava em causa. Era a verdade humana, o sofrimento exposto numa face, a história toda de uma vida naquele silêncio, naquele turvado olhar onde, como minutos atrás, o Tejo corria, esse Tejo que corre em todas as aldeias aquém e além mar. Quebrar esse silêncio seria sacrilégio, deixá-lo demasiado tempo poderia ser angústia demais para o grupo, assim, de chofre, sem sequer uma única palavra minha. Acordei do limbo pelo som da minha própria voz: “Scott, o que vê? O que sente?”

O que saiu de suas entranhas foi um misto de ladainha e cacofonia poliglota, das quais apenas consigo reproduzir “Beckenbauer, Partido del Siglo, Schön, liebe, Heraclitus, zug, river, I see a river…”. “Vejo um rio”, isto eu ouvi claramente, e fui atrás da imagem, como um urso segue o cheiro do mel, e aquele mel tinha um cheiro intenso. “Como é esse rio, Scott? Diga-nos como é esse rio…”. A minha mente tentava, aqui e ali, entrar em cena e controlar tudo. Uma voz em mim dizia: “Mas nem fizeste o aquecimento, elas nem sabem que ele é, ele não sabe quem elas são, que fazes??? Pára!”. Felizmente conhecia bem essas vozes e mandei-as passear. Aquecer aquilo que está em ponto caramelo? Vai acabar torrado! Deixa correr, este homem precisa de se exprimir, não tenho de o proteger, ninguém o conhece neste grupo, ele sabe que pode confiar em mim e, além disso, parece empenhadíssimo em fazer este jogo, mergulhar neste momento. E deixei correr.

“Este rio ser escuro, estreito, e chamar por mim. Este rio tem caros… tem carras… no fundo há… haver…”. “Há o quê?”, disse a Alexandra. “Cars and faces. This river calls for me, must dive.” A entrega daquele homem surpreendia-me. Amais, naquele contexto, onde uma semana antes tínhamos passado duas horas a falar de resistências à entrega… Disse-lhe: “Scott, quer mergulhar nesse rio?”. De olhos fechados, como se lesse um livro antigo, declamou: I hate catching spiders. Still, a man's got to do what a man's got to do”. “Temos letrado!”, sussurrou-me a Guida.

Pedi à Madá o seu lenço longo, azul, que quasi sempre trazia ao pescoço. “Posso?”, e estendi-o no chão. “Scott, aqui está o rio, como há pouco. Que queres fazz.?”. Não cheguei ao fim, ao longo da minha frase o corpo dele recuou um pouco e depois inclinou-se, num movimento ágil, puxando o lenço para cima de si e deixando-se girar, estendido no chão, de barriga para cima.

Morto. Parecia um morto, de mortalha de morto, azul cobalto, muito azul e no entanto morto. Baixei as luzes, quase ao mínimo. Todas as que estavam sentadas em cadeiras, num movimento quase coreografado, se sentaram no chão, apertando o círculo. Se alguém entrasse agora naquela sala, pensaria tratar-se de algum bizarro ritual, talvez impróprio para uma escola superior. Felizmente, o grande “ψ” que se pode ver na entrada da faculdade tem as costas largas…

“Pense em voz alta, Scott”. Nem me dei conta, mas estava a tratar por “Você” este homem que, na rua, tinha tratado por tu… Coisas dos contextos… “Este rio chamar por mim desde sempre, estar nos meus sonhos desde criança. Era antes muito forte, wie ein zug, era uma massa de água forte como um train, trem”. “O que sente, Scott?”. “Mein Herz, my heart, o meu coração, muito assustado, muito piquinino”. Ergueu as costas do chão e procurou conforto no olhar da João. Silêncio. “Quem é, Scott, de quem é esse olhar?”. “Opa! GranpaJan! Meu vô Johannes!”. Note-se: Scott não sabia da coincidência de nomes, até porque “aquele” João era Maria antes de ser João. Mas estas coincidências fazem-me sempre acreditar na sabedoria dos grupos nos seus olhares calados, nas longas conversas que se fazem nos silêncios, nos e com os corpos…

A João, sem precisar qualquer indicação minha, levantou-se lenta e, como se seguisse um guião ditado pelo olhar de Scott, rodeou-o, sentou-se atrás dele, deixando que o peso do seu novo neto pousasse no seu peito. Afagou-lhe, ligeira, os cabelos. Scott, criança agora, olhava em frente, como se visse algo a dois metros de si. Com uma excitação contida, olhou para trás, procurando o olhar do avô João. Era uma deixa para uma troca de papéis. “Scott – disse -, gostava que trocasse de papéis com a Maria João, ela faz agora de si e você faz de seu avô, pode ser?”. Scott nem hesitou, como se aquilo fosse o seu estilo de vida. Era um homem dos teatros, dos papéis, dos personagens, aquela criatura. No lugar do avô, fechou momentaneamente os olhos, como se entrasse no papel. Ficamos todos em suspenso, notou-se que todos nos inclinámos ligeiramente para a frente, como se esperássemos um ligeiro murmúrio. “Toooooooooor!”, explodiu, quase matando de susto todos, em particular a João, que agora, no papel de Scott criança, estava ao colo do avô. “Gooool, goal, golo! Schnellinger!!!” Scott, aliás, o avô João, olhava agora o seu neto, como se esperasse uma reacção. “Troquem”, disse eu, e de novo Scott foi fazer de si próprio em criança e a Maria João se colocou no papel do avô. “Gooolo!”, gritou ela, e o neto, de imediato, começou a soluçar. “Scott, querido, que se passa?”, dizia a João, aliás, o avô João. Scott chorava, inconsolável. Deixei os momentos passar, até que Scott começou a balbuciar… “… sozinho, tenho medo, não me deixes”. “Não te assustes, foi só um golo, um susto, já passou!”. “Nein, Opa, estou sozinho, não me deixes…”. A João não sabia o que fazer. Sugeri uma nova troca de papéis. Scott, no papel de avô, levou o neto para a cama, deitou-o, afagou-o, acalmou-o. Decidi que era altura de Scott ser ele de novo, criança a ser deitada por seu avô. A João fez o seu papel com um carinho extremo, mas aquela criança não sossegava. Pedi ao “avô” que saísse, e perguntei a Scott, que estava tapado pelo lenço azul como se fosse uma colcha: “Como está esta criança? Dorme, sonha?”. “Acordado, estar acordado. Meu avô não saber ainda, mas meus pais morrer, eu estar sozinho. O golo da Alemanha foi só para tapar estrondo do comboio, foi horrível. A polícia vai aparecer nossa casa, meu avô quase morrer, não quiser-me contar…”.

Os minutos seguintes foram comoventes. Entre trocas de papéis, que não assinalo para não perder o ritmo do diálogo, percebemos todos que aquela relação entre avô e neto marcaria a vida de ambos até ao fim:

S.: Ja, Opa, ja Opa. Eu saber que mama e papa gostar muito de mim, mas quando ver eles? Juras que estão à nossa espera em América? Ter um restaurante e bar? Quando vamos viver eles?
J.: Breve. Mas eu leio-te as cartas deles, enquanto tu não aprender a ler. Olha, esta chegar hoje: “Dear Scott, mama e papa estar muito bem. Restaurante muito cresceu, muitos empregados, papa vai ver muito boxe, todas noites, mama aprendeu cantar e canta no bar restaurante noite. Vida América muito boa, poder vir com avô. Se nós não estivermos cá quando chegarem, é porque fomos viajar, mas vamos escrever muito. Beijos no avô Johannes. Aprender depressa a ler, para escrever nós cartas.”
S.: “Opa, mama e papa não vão estar América quando nós chegar?”.
J.: “Vai estar, sim, vai estar…”.

Escrever, escrever. A escrita e a imaginação, como não, foram as saídas desta criança. Não percebemos grandes detalhes sobre o que aconteceu nesses momentos da sua vida, mas tínhamos visto ali uma criança marcada pela perda, por um medo maior do que podia suportar, e com uma saída que parecia surgir-lhe à frente como quase única: manter, no imaginário, o contacto com aqueles pais subitamente desaparecidos. E o avô, como garante solitário do seu conforto.

“Scott, ainda temos algum tempo, posso lançar-lhe um último desafio?”. “Sim.”. “Então faça o seguinte: apresente-nos, na forma de um quadro, de uma fotografia, de uma cena, aqui no meio, a sua vida, tal como a vê neste momento.” “What?”. “É simples, trata-se de que coloque aqui no centro do nosso círculo, pessoas, coisas, símbolos, o que quiser, como se estivesse a fazer um quadro vivo sobre a sua vida. Vá fazendo, vai ver que é simples”.

Scott colocou-se quase no centro do espaço. Olhando em redor, escolheu a João, a Alexandra e a Madá, e colocou-as atrás de si: a João logo atrás, quase tocando-o, mas sem contacto visual, a Alexandra à sua esquerda, num dos cantos virtuais do espaço que começava a desenhar-se, e a Madá no “canto” direito. Olhando em volta, encontrou alguns livros em cima das mesas, e empilhou 4 deles no sítio onde estava, sentando-se em seguida sobre eles. Por fim, colocou as restantes pessoas à sua frente, mas agrupadas a duas: um par parecia lutar / dançar, outro jogava cartas e bebia, o terceiro simulava uma trapezista e o ajudante que vela pela sua segurança. Percebemos, pelas suas curtas explicações enquanto montava aqueles pares, que cada um contava uma história.

Um resumo, muito resumido mesmo, daquele quadro: Scott no meio, sentado em cima de livros, atrás de si, um trio, que revelou ser o avô (logo atrás), a mãe e o pai (nos cantos), e à sua frente 3 histórias, e mais seriam se mais pessoas houvesse ali…

“Obrigado, Scott. Então isto é como você vê a sua vida, hoje. Olhe, venha para aqui, ver o aspecto da sua obra desde aqui. Eu substituo-o”. E trocamos de lugar. Scott murmurou uns sons, como se observasse algo de muito evidente para ele. “Volte para aqui, Scott. Agora, gostava que, para terminar, nos mostrasse, não como vê a sua vida, mas sim como gostava que ela fosse…”. De imediato, e como se tivesse antecipado a minha proposta, Scott levantou-se, girou 180 graus o seu corpo, e sentou-se de novo. Ficou assim com os “pares contadores de histórias” nas suas costas e com a sua família à sua frente. Permaneceu em silêncio uns segundos. De uma forma espontânea, deu um pequeno passo e abraçou o avô. Aí permaneceu uns segundos, até puxar o avô com ele até seu pai, a quem abraçou igualmente, emocionado e emocionando. Deixou o avô com o pai, tocando-se, e, olhando primeiro o chão e, a pouco e pouco, dirigindo o olhar ao de sua mãe, foi começando um murmúrio e, já num abraço de total entrega, começou num pranto acompanhado de um longo e totalmente incompreensível queixume, em alemão. Assim ficou longos minutos, sempre abraçado, sempre em murmúrios. A Madalena, habituada às lides de mãe, mantinha o abraço e ia também murmurando na língua que falam mães e bebés.

Deixei o silêncio tomar conta da sala, antes de sugerir que nos sentássemos. Abri o momento dos comentários, mas ninguém tinha nada a dizer, nem Scott. Parecia exausto. Não me recordo de grandes detalhes, sei que também não disse quase nada, apenas agradeci a todos e ao Scott. Alguém bateu à porta, era um empregado que nos vinha expulsar, a hora de fecho da faculdade já tinha passado. Descemos, saímos da escola. Houve uma troca de olhares final, sorrisos cúmplices, agora que aquele novo cenário, de automóveis buzinando, estudantes e boémios cruzando-se, gente apressando-se em direcção à estação próxima, começava a trazer-nos da nossa longa viagem. Scott, lentamente, foi deixando a sua atenção dispersar-se por todos estes estímulos. Um novo semblante surgiu no seu rosto, quase antevi um esboço de cor rosácea, como se tivesse ficado ligeiramente envergonhado, olhando as escadas íngremes que subiria em seguida. Parecia querer dizer que tinha de ir, deixar-nos, mas o seu quase imperceptível rubor deixava adivinhar um encontro aguardado. Seria uma amiga, uma amante? Quando Scott começou a subir, de costas para nós, a Cláudia disse: “Direitinho ao Tejo Bar…”. A mim, a vontade levou-me de novo para a margem do rio.

(A.G.)

Um mortal de papel




Tantos papéis!
Voavam esbranquiçados na noite luzidia e turva. Folhas de papel A4. Por momentos pensei que o vento tinha libertado o lixo acamado nos caixotes ou então poderiam ser papeis de crianças que brincaram de dia no jardim perto do bar, voavam pelas ruas íngremes onde ao corrermos podia constituir sempre uma aventura melindrosa e até brincalhona, um bailado.

A correr, defendo-me do asfasto, do vento e das paredes incertas das ruelas, tentando não olhar para os candeeiros, para a lua para não me distrair, abstrair-me ou ainda ir ao encontro de outra coisa qualquer e desistir. Concentrei-me.

Na mão esquerda tinha o meu casaco e a mochila para trás das costas, corria atrás das folhas seguindo o instínto das que devia apanhar, uma delas rasguei-a, com a força de a trazer até mim, outra voava escada abaixo do beco. Foi quando pensei que só tinha de apanhar uma que fosse.

Não me podia era distrair, olhar para os candeeiros, para noite, para lua, para nada, o objectivo era apanhar uma folha de papel. Mas estas esvoaçavam cada vez mais alto, então, ja me divertia a tentar apanhar as que voavam altas e faziam--me saltar. Umas esvoaçavam directas ao rio; Portanto, o pessoal da outra margem amanhã terá incentivos para acordar, quem sabe nem dormir a colher letras de letras e palavras. Por um dia esqueçam que vão dormir mais um pouco na multidão de colchões humanos que são trazidos pela manhã, em forma de gente.
- Vão estar acordados... imaginemos com os corpos ondulados à procura de outra e outra folha.

Por cá, deste lado do tejo, os moradores manifestavam-se devido ao barulho que se fazia sentir no bairro, apesar da brancura dos papéis dizerem o contrário. E, foi então que encontrei, uma coisa, como uma prosa ainda por construir e alguns esboços de poemas.

Então aquele homem de olhos repteis, porte arrogante, mas desgrenhado e sem medo de cheirar mal que entrou pelo bar a dentro, olhando para todos os ângulos e saiu quando alguém o olhou estava perdido. Pensa-se.

Encostada numa parede na penumbra, ouvindo o ruído dos meus conterânios que habitavam o bar. Lia e tentava descortinar, a letra e identificar o olhar fugídio reptil daquele homem que tinha tirado a todos o sossego e a alguns aquecido mais a ”vida morna” que se fazia sentir nestes tempos.

Para não ouvir mais comentários, nem murmúrios sequer, lia as duas folhas que vieram cá parar, em pé com as pernas cruzadas.

Naquela noite neste bairro voavam palavras, prosas, histórias de História, poesias, tantas coisas que alguns até pensavam enriquecer quem sabe… acrescentando alguma coisa às palavras, à história até poderia dar para editar um livrito, ou ao jeito do bairro dizerem "que estava pronto a sair" acabado de escrever:
"Não fosse esta, uma Nacão de poetas" .

Só me resta saber mais do homem que olhei no bar, com olhos de reptil; rã exageradamente altivo, fato beije cheio de manchas de óleo, que se apresentou como "jonhnn", o homem dos dois "nn" como aqueles, que falam mais alto quando dizem o apelido.

Apresso-me a ler um dos papeis:
"Aposentei-me não sei se de escritor ou retratista de histórias, mas vou fazer esta viagem. Vou viajar até ela. Se o meu amigo a descobriu na sua tese de Mestrado em "Gente do Povo-que sabe Cantar". Eu vou sua procura- la.

E entrou mundo a dentro, melhor europa a dentro. Mas antes desta aposentação vou encontrar a musa morena, de cabelo farto, baixa e forte, como se de uma rural se tratasse, mas que deu sabor às palavras, aos versos e que enriquecia as ruas mouras de uma daquelas cidades para os lados de Espanha ou Portugal.

Enfio-me no primeiro barco que vá para Espanha, digo às tias que parto por uns tempos para Hamburgo para descançar, pois ando frágil e cansado, farto de me assustar com os sons vindos deste casarão, ainda oiço os passos do meu pai e o ranger da porta do meu quarto pela tia Rita a verificar se durmo, se o naperon do copo de água está direito.
- Não, Não é desta!

Enfio uns fatos de inverno na mala preta e escondo-a no jardim e vou: eu e as minhas folhas atadas por um cordel, o meu diário gráfico em branco e entro no primeiro barco que vá para Espanha, nao melhor ... "Madrid".
-Se ela vivia numa cidade, se era uma zona mourisca e se cantava como só os árabes sabem apregoar. Vou parar em Madrid; Logo de vê...

Embarquei, sabia que se dormisse podiam roubarar-me a bagagem e perdi-a. Na verdade perdi-me. Sei que vim parar a Paris, vagueei por lá, encontrei-me com alguns esquerdistas, que tinham um semblante desgastado e outros que acreditavam que podiam fazer uma revoluçao. Todos eles tinham uma paixao em comum pelo vinho, outros até pela Heroina.

Havia então, uma revoada de pensamentos ideologicos e quando percebi que estava a manifestar-me entre extremistas de direita com ar saudavelmente animalesco que tentavam brilhar nas lentes, dos homens e mulheres de esquerda, resolvi fujir. Nunca fui dado a confusões. Ainda por cima, já as tias deviam de andar à minha procura, nos postos de correio e hospitais da Alemanha.

Chego a uma estação e falo do meu sonho, havia por lá uma mulher ávida de dar informações:
"- Essa é uma história portuguesa, a mulher que o sr. jonhson ou jonhn fala é da Severa! - ouvi, sem falar.
"-Não é para estes lados... é lá para Mouraria, num desses bairros, mas a história é antiga sr. Jonn..é assim que se diz?
Sim. sim..
- Cantava Fado e morreu nova foi da vida...
e continuava a falar sem coordenação. Senti. Afastei-me, os meus ouvidos faziam ressonância, a voz dela era alta, zangada, ao afastar-me, agradecia, agradecia, até ficar com os rins a picar de dor.

Parti, melhor fuji. Queria ver a minha musa, sei que era uma prostituta, que todos os homems a cobiçavam só com o rolar do cabelo, sei que era do povo. Mas como ouvi dizer que havia gente de brazão a juntar-se a ela, à sua carne, à sua pele perseguia-a, cada vez mais àvido de ver algo igual a ela, que cheira-se a ela, a tal que diziam ter feito nascer o dito fado. Cântico, dito e cantado pelo povo em sitios com aspecto medieval, tavernosos. Os quais procuro.

Quando cheguei a Portugal ja não tinha sapatos, os meus pés eram iguais aos dos meus companheiros de estação, cheios de chagas, foi quando roubei uns sapatos ao outro que dormia aqui ao lado. Depois de uma boa refeição e fortalecido decidi dirigi-me a um dos locais onde ainda não tinha estado. Estava com medo, porque não encontrara nem severa, nem taberna, nem musas, nem fado onde se possa entrar sem umas boas notas no bolso. E onde as prostitutas são todas magras e adoentadas, pelo menos lá para o lados da musa de nome "Severa".

Nada que se parece-se com a roliça fadista. É assim que chamam aos amantes dessa musica, "fadistas". Mas estava decidido, depois de ter aprendido a roubar meias, cuecas, sapatos, ser rejeitado nas festas sociais em Paris e ter dormido como moribundo, mas de sangue azul, tal como faço questão de frisar quando estes papéis forem borda fora.

Entrei naquele bar, olhei, fuji. Vi os bares todos ali dentro, as tertúlias de Paris, a casa de amigos de amigos, as noites animadas com artistas circo, a dormência das pernas atacou-me, o zumbido voltara de novo, a cara dela, os olhos, ainda toquei na perna........."

Foi isto que li, há mais qualquer coisita, aqui, ali. Na manhã seguinte fui à estação de Santa Apolónia e um homem de media idade, que dormia por ali, disse-me:
- Quê! um tipo com ar esquísito que andava sempre com um saco agarrado ao peito?" - outro dizia - Não sei.
Outro, só para participar dizia:
-"Sim, aquele gajo esquisito". Andava aí agarrado a um saco.... murmuravam e ao olhar revivi por momentos a identicação dos pés em chaga do meu desconhecido mortal.

(Paula Boavista Boto)

Petrus cabreiro em fuga



Aqui vai a minha contribuição para a história das aventuras do nosso muito amado escritor Petrus Scott Johnsonn. Acrescentei-lhe o nome Petrus (Pedro/Pedra, Calhau) para o tornar mais pessoal, mais próximo, pois Scott e Johnson são apelidos. Geralmente as pessoas vaidosas é que usam só os apelidos. Entre outras coisas, o uso apenas dos apelidos não nos permite saber se estamos perante uma personagem masculina ou feminina.


O escritor Petrus Scott Johnsonn, nos últimos tempos, tem manifestando descontentamento com a vivência no mundo capitalista, porém mais recentemente acentuou-se a sua desilusão e desencanto com os excessos do capitalismo transformado em neoliberalismo predador da riqueza dos povos, que deveria servir para prover as necessidades de toda a humanidade, pelo menos com um mínimo de decência e dignidade. Desencantado Petrus, teve a ideia de se refugiar na brilhante Serra da Estrela. Se bem o pensou melhor o fez! Para se ocupar e ao mesmo tempo adquirir experiência e, quiçá, matéria para mais um relato das suas intermináveis aventuras, decidiu tornar-se pastor. Pastor de cabras. A cabra é além do mais um animal muito bonito, alegre e, segundo a mitologia, está associado aos faunos, ao deus Pan, e ao próprio Diabo. O Diabo que, como é manifesto, é amigos dos pobres e dos desfavorecidos e, portanto, não vai à missa dos neolibaralistas nem se passeia entre os seus anafados deuses. A vida de pastor, que a Petrus Scott se afigurava idílica e feliz, a breve trecho,tornou-se um inferno, pois o amo, pôs Petrus a viver permanentemente com o rebanho - e a dormir no redil - a comida era pouca e de má qualidade. Petrus passou a ter que partilhar as mamas das cabras com os cabritos. Quando, certo dia, pediu ao amo algum dinheiro, para matar saudades de beber uma cervejita, a resposta que obteve foi uma barrigada de porrada! Exactamente, porrada, com um porreto ou varapau! É claro que o estado de ânimo de Petrus S. Johnsonn não podia ser pior. "Este mundo é mesmo cão", pensava e repetia de si para si vezes sem conta. "Vivemos num mundo cão!" A única solução que Petrus vislumbrava para o seu futuro imediato era fugir dali. Mas fugir para onde? interrogava-se, ainda por cima sem dinheiro e sem quaisquer condições materiais e não conhecia ninguém, nas imediações, a quem pedir ajuda! Apesar da situação deplorável em que se encontrava o nosso escritor não perdeu o sentido de humor e tentou convencer-se que o melhor sítio para onde poderia fugir era para Raiva! Bastava-lhe descer o vale do Rio Mondego e, assim conjugaria o seu estado de espírito com o nome do sítio! Contudo, pensando mais demoradamente no assunto, concluiu que, deveria era fugir para Picha; ali para os lados da Serra de Sicó, onde também se faz bom queijo e melhor vinho! Sim, fugir para picha, porque não conhecia nenhum lugar chamado Caralho. Se conhecesse era para lá que fugiria. Bem, mas pelo menos iria para um sítio cujo nome é sinónimo do "pai da gente", razoneava Petrus com os seus botões. Mas, há sempre um mas a considerar, se fugisse para Picha, os seus amigos - e os inimigos - poderiam levantar dúvidas sobre a sua orientação sexual. Dúvida caluniosa. É que a calúnia é como a poeira, quando levanta não deixa ver bem e, quando pousa, suja! Todavia, todavia, Petrus encontrava sempre mais un senão nas suas escolhas: para qualquer destes lugares tinha que ir a pé! Foi então que o seu cerebrozinho começou a flashar com uma ideia luminosa: tinha encontrado a solução! Abandonar aquela vida de cabreiro e fugir para Puta que Pariu, é que para este lugar até podia ir de autocarro! Na noite seguinte, enquanto as cabras ruminavam, o amo dormia e os cães ladravam, Petrus Scott, escapoliu-se do redil e tomou o autocarro para Puta que Pariu:




(Walter A. Silva)

Una leyenda


El “Escritor” nunca mas fue visto por estas tierras pero hasta el dia de hoy se sigue hablando de el y como toda leyenda se agregan historias de las que nadie supo jamas.

(Carlos, "El Argentino”)

Comunicado I



Aos escritores, Ondjaki, Inês Pupo, Filomena Cabral, Daniel Machado, Filipa Leal, Xosé Ballesteros, Agualusa, António Barreto, Mia Couto, Pedro Mexia e José Mário Silva (penso que falhei alguns) que manifestaram interesse em participar da aventura literária de dar corpo e alma ao escritor Scott Johnsonn e que não possam dar a cara devido a cláusulas contratuais com editoras e também aos outros participantes que por um ou outro motivo prefiram o anonimato, assinem as obras com pseudónimo ou entreguem como autor não identificado, o que já aconteceu mesmo sem querer e não é de espantar pois a brincadeira já conta com mais de 250 interessados.
Certo é que procuraremos levar essa empreitada o mais independente possível, mas nunca se sabe que proporções tomará. O que hoje não passa de um exercício de criação artística que dá oportunidade a escritores, outros oficiais e leigos a se integrarem, onde vale mais a obra que a assinatura, amanhã, pode cair no esquema comercial e há que salvaguardar os direitos dos autores portanto, apesar do pseudónimo, o registo da obra será sob o nome legal, que só para esse efeito será usado se assim for o desejo do autor.
Por ora, é só.
Seguiremos dando notícias sobre o desenvolvimento do jogo.
A quem não quiser receber os comunicados pedimos que mande uma mensagem.

(Email da organização)

Fim da primeira fase



Semeadura
Com o final da Feira do Livro de Lisboa encerramos a primeira fase da nossa aventura literária que conta com 220 interessados em participar.
Colheita
Agora, começa a segunda fase que se estenderá até outubro para aproveitamento do período de férias.
Cozedura
Começa em novembro e sabe Deus quando acabará.

Obs:
Alguns participantes têm demonstrado certa inibição ou receio para expor as suas ideias que por vezes são bem interessantes e criativas.
Não se acanhem.
Se por um motivo ou outro não puderem colocar a sua intenção no papel, conte-na e procuraremos estabelecer parceria com quem tenha maior disponibilidade ou aptidão.

Faça gosto ao dedo e lembre-se que vale qualquer língua e qualquer linguagem.

(Email da organização)

Gilberto Gil, o Feiticeiro

Fim da noite/Fin de la nuit

La nuit s’estompait et la brume recouvrait tant le quartier d’Alfama que l’esprit de Scott Johnsonn.
Mais déjà les premières lueurs du jour cueillaient son cerveau toujours alerte. Il avait cessé de pleuvoir.
Ah la pluie, la pluie, un miracle. Devant les derniers clients Scott commença une histoire.
J’ai vu un miracle, un vrai miracle. Ecoutez cette histoire c’est une histoire vraie. J’ai des témoins qui pourraiient la confirmer.
C’etait un Carnaval. Pas n’importe lequel des Carnavals. Le plus mystique, le plus endiablé, celui de Salvador de Bahia.
Le temps était moite, l’ambiance electrique. La fête battait son plein. Les chars passaient, rythmant la foule et déclinait la joie de vivre.
Surgit tout d’un coup le seul char ouvert à tous sans cordes pour en limiter l’accès. Avec Jorge Benjor le grand et Lulu Santos le populaire, un troisième musi-magicien menait le bal.
C’était Gilberto Gil, le ministre de la Culture, le musicien immortel qui mieux que personne savait parler la langue universelle, celle du coeur et de la passion.
Après les chars populaires qui avaient défilé, celui du ministre était pour moi comme un oasis dans la tempête. Comme hypnotisé je quittais le bord de la route pour le suivre. Bien m’en pris!
Après les taj mahal et autres que nada que le trio entonnait pour célébrer les compositions de Jorge Benjor, ce dernier initia “Chove chuva, chove sem parar”, un hymne à la pluie.
Et lá croyez-moi ou non, un miracle s’est produit. La pluie, qui n’avait pas donné signe de vie depuis plusieurs jours à Salvador, s’est mise à tomber à grosse goutte, tout d’un coup, au son de la chanson.
La foule autour du char était en délire. Je me pinçais plusieurs fois pour m’assurer que je me rèvais pas. Non, c’etait le monde réel, le Carnaval en folie, la danse, la transe, la chanson de la pluie, le ministre et la pluie magique. Une pluie indiscutable, simple, profonde, evidente, pleine et vive.
Et croyez-moi ou non, sitôt que les musi-magiciens passèrent à la chanson suivante, la pluie cessa comme elle était venue, soudainement, pleinement. Et pendant plusieurs jours le temps resta sec.
Le premier rayon de soleil toucha la plus haute des maisons sur la place devant le bar.

Scott Johnsonn avec 2 n montrait des signes de fatigue. Sous le regard toujours aussi fasciné des derniers clients du bar, qu’il avait captivé avec son discours au point que plus aucun ne cherchait à s’accrocher à une dernière cigarette ni à un dernièr verre, le barman pu enfin vider les tables, tandis que l’écrivain venu de nulle part s’assit sur les marches devant la salle, le regard brusquement lointain, aténué, mais heureux. Il dormait.
P. S. : Essa história é verdadeira.

(Theo Bondolfi)
(…)
Ele leu, e de outra maneira passaria desapercebido, que um ministro de um país amigo fora impedido de entrar nos Estados Unidos com um visto normal e que deveria esperar por um especial. Foi ver direito, o país era o de nascimento do seu pai, o ministro em questão tinha a tez tal qual a da sua avó. Descobriu que o ministro era também artista e que protagonizou o episódio relatado pelo Theo Bondolfi e pensou:
Acho que o governo americano não gosta de feiticeiros!

(A organização, segundo palavras do Scott Johnsonn)

Mapa Astral




(Maria João)

Maria

Maria dominava como ninguém a arte de bem gerir o restaurante, sempre teve muito jeito para o negócio, sendo extremamente hábil a negociar com os fornecedores para obter preços especiais e descontos, por vezes era uma autêntica “carraça”, tão chata tão chata que vencia pela exaustão. Ficava muito orgulhosa, pois era tão boa como qualquer homem, ou mesmo melhor.
Porém, Maria tinha o desgosto de não conseguir namorado. Sendo tímida, feia, gorda, com juba de leão e com uma cor de cadáver esgadelhado jamais conseguiria um gajo bonito e decente. Quem é que iria gostar de um trambolho como ela. Ia morrer velha, seca, burra e amarga, sem amor.
Afogava as suas mágoas nos números, nos cozinhados e nas larachas com os clientes do restaurante (os habitués, não os estranhos). Gostava de brincar e dizer piadas, mas demorava um pouco ambientar-se às pessoas novas.
Este mal-estar tinha uma razão de ser…quando Maria andava na segunda classe teve uma paixoneta secreta por um colega de turma, David era seu nome. Maria olhava para ele e babava, achava-o lindo de morrer, cada vez que David passava por perto ou falava, Maria ficava tão vermelha que sentia a sua cara a ferver e não conseguia dizer nada. David era um espectáculo, era loiro, olhos grandes castanhos esverdeados e estava sempre a rir. Maria confessou à sua melhor amiga Anita que gostava de David, por sua vez Anita descuidou-se e disse é bruxa da Dina. Esta miúda era cruel, tinha a mania que era boa, e como é óbvio gostava de David fazendo tudo para cair nas boas graças dele. Maria era gordinha e para o lanche levava sempre alguns doces, partilhando com as amigas, inclusive com David. Dina não gostava daquela intimidade e depois de saber que Maria tinha um fraquinho pelo seu querido pensou que aquilo era demais, e decidiu tomar medidas drásticas. Certo dia, Dina combinou com uns rapazes para colocarem uma lagartixa pequena de plástico na lancheira de Maria. Quando esta foi abrir a lancheira, o boneco de plástico saltou, para a cara, sujando-a de creme, ao mesmo tempo a sua lancheira caiu. Maria com medo da lagartixa que lhe saltou para cima gritou o mais alto que pôde e ainda por cima ficou suja de creme da bola de Berlim, porque o boneco estava todo coberto pelo creme e para além disso, Anita entornou sem querer o iogurte líquido que estava a beber em cima de Maria, que por sua vez correu para longe aos gritos a esbracejar, toda suja de creme e iogurte. Esta cena hilariante fez com que toda a malta risse descaradamente, inclusive David. Maria ficou tão envergonhada. Mas ainda não satisfeita, Dina humilhou-a, dizendo a todos que Maria, a miúda Gorda e feia como um bode estava interessada em David. Dando origem a outra risada geral. Maria só lhe apetecia desaparecer e fugiu para a casa de banho lavada em lágrimas.
Aquelas palavras maldosas sempre ficaram no inconsciente de Maria. Havia dias em que se mirava ao espelho e pensava que não estava assim tão mal, no entanto havia dias em que se achava horrorosa, até tapava o espelho para não ter que ver a sua própria imagem.
O pai tinha muito orgulho na sua filha, ela tinha amigos e amigas, saía, mas tinha sempre a sensação que ninguém iria amá-la. Havia mulheres tão lindas e ela era tão malfeita. Para Maria, Deus tinha-se esquecido dela.
Dizia para si própria: - com tanto gajo no mundo e ninguém olha para mim…porquê, mas Porquê???
Maria estava determinada a mudar de atitude, pois as suas amigas diziam que ela era maluca, paranóica até. Diziam que Maria era bonita, o problema estava relacionado com o facto de ela fugir dos homens a sete pés quando se apercebia que podia haver algum interesse. Diziam que Maria era a culpada de não ter ninguém porque afastava os homens. Maria negava...claro que não…não era verdade…ou era!?
Pensou em fazer uma auto-análise sobre a sua vida. Era bem-sucedida profissionalmente, estava bem com sua família, tinha bons amigos, bem financeiramente, tinha uma saúde de ferro, só faltava um namorado, mas o pior é que nunca tinha tido um namorado. Isto era estranho. Pensou…pensou…pensou e verificou que tinha medo. Mas medo de quê? Fogo, não acredito eu sou uma medricas de merda. Não pode ser!
Mas qual será a pior coisa que me pode acontecer se eu me apaixonar?
1- Gostar de alguém que não se interessa por mim. É mau, mas passa.
2- Gostar de um gajo passado dos carretos. Bem, assim que me apercebesse ponha-o a milhas e ficaria desgostosa.
3- E se fosse correspondida. Aí, era bom e mau, bom porque me iria sentir bem, mau porque não sabia o que fazer.
A verdade é que tinha medo. Era mais fácil negociar com os fornecedores e gerir o restaurante do que mandar nos seus sentimentos. O que a assustava de veras era o facto de se poder descontrolar, de gostar demasiado e ser magoada. Todavia, uma coisa era verdade se ficasse encostada a um canto encolhida com medo e não fosse à luta, então a vida passa por ela, não era magoada, mas também não conhecia nada, nem o bom, nem o mau e muito menos o Amor de alguém. Seria sempre uma mulher incompleta e frustrada.
Seu pai sempre lhe ensinou a ir à luta e orgulhava-se dela por ser corajosa. Contudo, a nível sentimental considerava-se tão inexperiente que parecia um bebé.
Maria decidiu mudar. Com a ajuda de suas amigas comprou roupa nova, mais moderna, mas foi uma luta renhida, porque Maria era tão agarrada ao dinheiro que considerava tudo caro. Foi obrigada pelas amigas a ir à natação para ficar mais “enxuta”. No dia dos seus anos a irmã e o pai ofereceram-lhe uma viagem de avião para Paris, seriam duas semanas de férias em França na casa dos tios, aproveitando para espairecer e conhecer a cidade. Maria ficou radiante.
Em Paris, Maria estava maravilhada, pois encontrava-se numa das cidades mais românticas do mundo. Os primos foram com ela à Torre Eiffel, ao Museu da Cera, à Notre-Dame. Depois outros amigos dos primos juntaram-se ao passeio. Jacques, um amigo do primo era muito simpático e engraçado. Foram visitar o Louvre, o Arco do Triunfo, os campos Elísios, entre outros locais. As duas semanas estavam quase no fim e Jacques levou-a a passear de Barco no rio Sena, foram ao cartier Latim comer num restaurante grego e beberam bem, depois foram ao edifício de escritórios de Jacques ver a vista panorâmica sobre Paris. Maria estava um pouco quentinha e zonza com a bebida e Jacques também, os dois começaram a rir de um disparate que disseram e quando deram por eles estavam sentados no chão lado a lado.
Maria olhou para Jacques e pensou como ele é bonito, caraças. E deu um pequeno suspiro.
Jacques como que adivinhando o pensamento de Maria, aproximou-se e acariciou os seus cabelos ruivos, depois acariciou a sua face e deu-lhe um beijo muito suave nos lábios. Maria estremeceu. Em seguida abraçou-a e começaram a beijar-se com mais avidez. Maria estava tão nervosa…estava finalmente a acontecer. Mas de repente ela pensou que não estava certo, o medo apoderou-se de seu corpo e decidiu parar com aquela cena de beijos que só podiam levar a disparate. E disse: - Pára Jacques, já chega.
Jacques olhou surpreso e perguntou: - Fiz algo errado?! Estou a ir muito depressa ou percebi mal? Eu pensei que estavas tão interessada em mim como eu estou em ti! Possivelmente enganei-me, peço desculpa.
Maria: - Não, não fizeste nada de mal. Sou eu, o problema é meu. Não quero ser magoada sabes?
Jacques: - Não te quero magoar, bolas! Gosto de ti.
Jacques afastou-se um pouco, baixou a cabeça e colocou as mãos nos bolsos, fez uns desenhos no chão com o pé direito como se tivesse distraído e em seguida tirou as mãos dos bolsos e aproximou-se agarrando os ombros de Maria de uma forma brusca. Olhou-a nos olhos e perguntou.
Jacques: Maria, responde-me honestamente por favor, sentes alguma coisa por mim ou não?
Sem saber se deveria falar verdade ou não, Maria engoliu em seco e envergonhada, disse que sim com a cabeça.
Jacques esboçou um largo sorriso e abraçou-a. Jacques disse: Tudo bem, vamos com calma. Pode ser assim?
Maria concordou.
Jacques pediu-lhe: Maria fica mais duas semanas, por favor.
Maria negou com a cabeça: Não posso, há muito trabalho no restaurante, é necessário que eu lá esteja.
Jacques: Sim, eu sei, mas o trabalho não foge. E se tu estivesses doente o restaurante não funcionava?
Maria: Claro que sim, mas, exige responsabilidade.
Jacques insistiu: Maria, por favor, fica. Precisamos de nos conhecer melhor e se tu fores o que poderia existir, a hipótese de ter algo bom contigo nunca se realizará. Estamos em países diferentes. Fica são só duas semanas.
Maria: Eu vou ver o que posso fazer!
E ficaram abraçados a admirar a vista panorâmica de Paris à noite.
Maria falou com o pai e com os tios e decidiu ficar mais duas semanas.
Deu a notícia a Jacques e este ficou muito satisfeito, comentado que Maria tinha tomado a decisão certa.
Passearam os dois juntos de mão dada pelos campos Elísios, trocando carinhos, brincadeiras e risos. Durante alguns dias deambularam pela cidade como namorados. Até que no fim da primeira semana Jacques convidou-a para um jantar
romântico em sua casa. Após o jantar foram para a sala ouvir música e dançar, enquanto isso começaram a beijar-se devagar, depois mais intensamente, até que pararam de dançar e deitaram-se no sofá. Maria deu um beijo no nariz de Jacques, depois no olho direito e no esquerdo, percorreu a cara com pequenos beijinhos desde a testa até ao queixo e depois beijou-o na boca para em seguida continuar com pequenos beijos até à testa, voltando novamente à boca, contando os beijos que dava (contou até 10). Em seguida brincou com as orelhas, com pequenas lambidelas e Jacques ria, pois fazia uma certa impressão. Depois fizeram amor. Durante a última semana namoraram e amaram-se, até que Maria teve que regressar a casa.
Mantiveram o contacto por carta e telefone. Certo dia, Jacques teve uma oferta de trabalho para o Japão, e a partir daí os contactos passaram a ser mais escassos. Maria considerou que um namoro à distância não ia dar em certo e resolveu manter a amizade, mas seguir a sua vida sem Jacques. Porém, uma outra Maria nasceu.

(Carmo Costa)

Bom Partido!

Já nessa altura Maria não era uma mulher qualquer. “Bom Partido” era uma ideia que surgia entre contas de somar, entre um débito de um credor ou um crédito de um caloteiro. Giro, mas caloteiro! Difícil era resistir-lhes, aos caloteiros, eram sempre giros! A creditar só tinham para o livro de contas, ao conceito de “ Bom Partido” traziam o vazio.
Levantavam-lhe a saia, viam-lhe as coxas. Ela sorria, sorria muitas vezes. Não que se excitasse mas a inveja que provocava na irmã casada e nova dava-lhe gozo. Aquele olhar que a fitava como se fosse uma qualquer enchia de energia a lida e a força. Não era à toa que se chamava Maria.
Desejo! Sentia por vezes desejo. Em algumas noites não podia ignorá-lo e tratava de culminar com as necessidades femininas que lhe surgiam. Maria de todo era uma Afrodite. Gostava demais de homens mas não tinha queda para “Bons Partidos”.
- “Ah … Ahhhh”… Eu Aguento.
Aguentava, umas vezes mais que outras.
Roliça, redondinha, seios que confundiam e afunilavam os olhares mais atrevidos, e outros tantos. O sorriso na face rosada, fazia-a mais menina, tinha origem em um copo e outro de vinho.
Quando encarnada de mãos na anca e a soltar a espontânea gargalhada, era certo… Já tinha ditado a sina dessa noite a uma visitante acompanhada por um charmoso com barba de nove semanas e meia. Essas barbas que contribuíam com meio crédito para a causa “ Para Maria um Bom Partido”. As senhoras com simpatia sorriam depois de ouvirem as alarvidades sexuais, vindas de Maria, acerca da compatibilidade matrimonial. Ela intitulava-se “ O Demónio”.
As bem-postas agarravam pelo braço o homem e saiam a acreditar que o desgraçado estava enfeitiçado e ia voltar nessa mesma noite para sucumbir aos prazeres da carne. A verdade é que, já secas, nem se masturbavam, restava-lhes uns quantos comprimidos de Prozac.
Maria não negava a raça das mulheres, a filha do Português, farta da sagaz inveja vinda do próprio sangue, regozijava-se a causar distúrbios a outras, dependendo sempre da qualidade dos “maridos”, ou da quantidade caso a sorte lhos desse a provar.
A porta do café fechava sempre à mesma hora. A hora que o relógio não marcava. A hora de sonhar.
Quando a lua brindava a soleira da porta, ela não resistia. O olhar erguia-se até à janela de umas águas furtadas. Janela com tabuinhas que escondiam velhas e gastas cortinas, com flores ridículas, que se moviam ao som de uma guitarra. Guitarra levada pelas mãos de um latino. Era sempre o latino, assim com sempre eram os caloteiros. Nem ela sabia o porquê mas ali ficava. Contentava-se com o som da guitarra visto no café nunca o ter visto pôr os pés.
O fulano, o gaiato, só podia ser isso o gajo, aparecia sempre com cerejas do Norte no “regaço”. Eram muitas as loiras, as nórdicas, as gajas, que ele passeava.
Era química, havia-lhe dito um amigo que para as bandas do frio já haverá estado. Os latinos e as loiras têm muita química.
Quanto à Física, dava-se ali entre a perna de uma portuguesa, boa de contas, que sonhava com um “Bom Partido”.
Maria com tudo e nada tinha um colo. Assim como qualquer mulher tem um colo e a cabeça cheia de sonhos.
Ali continuava noite após noite, hora em que lhe era permitido sonhar.

(Rita Moura Reis)

O Solo da Clarineta




O estômago do Johannes estava a incomodá-lo há horas. Por causa dele, Johannes não tinha comido nada no jantar. O neto tinha achado estranho – o avô tem sempre apetite.
Apesar de se sentir mal, Johannes começou a aperaltar-se como era seu costume sexta-feira à noite. Costumava ir a um clube de jazz próximo onde morava. Por vezes, sacava do seu clarinete para acompanhar os músicos. Um ou outro reagiam mal inicialmente mas depois acalmavam. Johannes tocava bem e não lhes roubava a ribalta. Antes pelo contrário, o suporte do clarinete de Johannes ainda os fazia brilhar mais.
Quando vestiu o casaco, a sua dor de estômago piorou. Que estranho. A última coisa que entrou no meu estômago foi o leite. Já passaram várias horas.
Decidiu não sair. Despiu-se e foi para a cama.

O neto ficou preocupado por Johannes não sair. Adora sair com o clarinete. É uma pena só tocar acompanhado. Foi falar com Johannes. Este disse-lhe que não se preocupasse. Sentia o estômago a doer. Já tinha tomado um remédio para as dores de estômago.
Decidiu deitar-se como o Johannes. Tinha um encontro combinado logo de manhã. Queria estar bem desperto.

Johannes puxou do clarinete na cama. Começou a tocar. O músico que estava a ouvir era espectacular. Nunca tinha ouvido nada assim.
O neto no seu quarto reparou que Johannes estava a tocar o seu clarinete. Nunca tinha ouvido o seu avô a tocar sozinho. Nunca, mas mesmo nunca.
Abriu a porta do seu quarto para ouvir melhor o clarinete de Johannes. Do seu ponto de vista, a forma como Johannes tocava era estranha. Nunca tinha ouvido a melodia. Algo digno de um Miles Davis mas diferente de tudo o que já tinha ouvido.
Porém, o mais estranho era Johannes tocar como se tivesse a acompanhar um ou mais músicos. Os tempos mortos eram em demasia – era como se um ou mais músicos ocupassem os tempos mortos. Mas o neto não os ouvia.
O neto deixou-se ficar a ouvir. Johanes tocou e tocou até o seu clarinete se calar de repente. Não é ali que a música deve acabar, pensou o neto. Levantou o foi ver o que se passava com Johannes.

Johannes olhava para o neto mas não conseguia falar. O neto percebeu que não estava nada bem. Rapidamente, procurou telefonar para o número das emergências. Enganou-se à primeira – tinha telefonado para as informações por engano. Cortou a ligação e desta vez telefonou para o número certo.
Depois de acabar o telefonema, bateu à porta de um vizinho. Pediu-lhe para esperar à porta do prédio pela ambulância – isso faria com que a ambulância encontrasse a morada um pouco mais rápido. Talvez essas dezenas de segundos fizessem a diferença entre a vida ou morte de Johannes.
Voltou para ao pé de Johannes. Apertou-lhe uma das mãos. Johannes tentou apertar de volta mas a sua pressão mal se sentia. O neto olhou para olhos de Johannes. Ainda existia alguma inteligência por detrás daqueles olhos. No entanto, o brilho dos olhos parecia diminuir a cada momento. Uma lágrima percorreu o rosto de Johannes.

Finalmente, a ambulância chegou. Trazia um médico e dois paramédicos. Quando entraram no quarto, o médico pediu para o neto esperar fora do quarto.
A espera fora do quarto pareceu horas para o neto. Todavia, quando o médico veio falar com ele, só tinham passado, no máximo, dez minutos.
As notícias do médico não eram as melhores. Sendo curto e grosso, Johannes tinha morrido. A causa da morte era um tipo de ataque cardíaco raro cujos sintomas de aviso eram dores de estômago.
Se soubesse disso, tinha-o levado para o hospital, pensou o neto – uma lágrima começou a percorrer o seu rosto. Talvez o tivesse salvo. Mas quem não sabe é como quem não vê.

O médico e os paramédicos retiraram-se. O vizinho ficou e os outros foram aparecendo. Não é bom ficar sozinho agora, pensaram vários.
Para o neto, os vizinhos estarem no apartamento ou não, não fazia qualquer diferença. Falavam com ele, mas não percebia nada. Dirigiu-se para o quarto onde o corpo de Johannes estava. Tocou no rosto de Johannes. Está quente. Parece estar a dormir. L

Passaram várias horas. O sol nasceria dentro de poucas horas. O neto voltou a tocar no rosto de Johanes. Desta vez, o rosto estava frio. O neto perdeu qualquer ilusão que Johannes acordasse.

(Ivo Dias de Sousa)

Solo em chalumeau

(Guião cinematográfico)


SEQUÊNCIA 1

/01 sozinho no deck
johannes

Johannes sentado com o clarinete nas mãos. Olhar perdido nos últimos raios do horizonte. Dedos accionam as chaves como que a executar uma música sem som.

Johannes
- Um, dois, três. Um, dois, três…




/02 conversa
johannes e aventureiro

Aventureiro senta-se ao lado de Johannes.
aventureiro
- Ai, mau!
johannes
- Ai, bom!
Cara de espanto do Aventureiro.
aventureiro
- Olha! Vejo que estás a aprender.
Uma alegria forçada de Johannes.
johannes
- Sempre bom. É como você diz. Tristezas não pagam dívidas.
Ficam um tempo calados.
aventureiro
- Afinal, o que aconteceu lá em cima? Se quiser, pode-se abrir com o amigo. Já tenho saudades das guloseimas que você nos trazia. Acabou-se a boa vida! Mas porquê?! Os nababos cansaram-se da sua música?
johannes
- Foi ela, meu amigo. Era ela o tempo todo. A maldita que armou tudo.
aventureiro
- Eu já desconfiava. Se fosse para a animação os bêbados noctívagos chamariam também os outros músicos cá de baixo. Pelo menos o da sanfona e o da rabeca.
johannes
- Pois, lá improvisávamos uns rítmos até eles caírem pro lado, mas na verdade ela só queria a mim, ou melhor, o meu clarinete. Esperava pacientemente, dava uma gorjeta para o empregado que me levava e me trazia… e me levava para o camarote dela.
aventureiro
- Uau! E é bonita ela?! Vocês… Ah, desculpa. Você está enamorado? Não precisa responder. Vê-se pela sua cara. Está completamente apanhado! Mas qual o problema…
johannes
- O problema é o marido.
aventureiro
- Como assim?! Apanhou-vos…
johannes
- Antes fosse! Ele está em Buenos Aires. É diplomata lá. Ela está viajando sozinha.
aventureiro
- Percebi. Uma aventura! Mas o que tem o marido?
johannes
- É que ela gosta do desgraçado. E eu que já estava propenso a mudar o rumo da viagem só para estar ao seu lado. Dar para ela tudo que ele não pode… não pode ou não quer dar.
aventureiro
- Se é o que eu penso… o sujeito…
johannes
- Um pederastra de marca maior. Para que que se casa um desgraçado desses!?
aventureiro
- Diplomata tem que se casar senão, vai descarregar as presões em cima de quem? Eu conheço alguns… Ela também não deve ser boa bisca. Desculpa. Mas eu penso… Quer saber duma coisa. Joga isso para trás. E vamos aproveitar essa última semana que temos juntos…
johannes
- Você não vai mesmo para o Brasil?
aventureiro
- Até que eu gostava de descer consigo. Mas andei fazendo umas besteirinhas por lá e se me apanham… Mas vamos aproveitar esta semanita para aprender o português. E assim você esquece a danada.
johannes
- Vai ser difícil!
aventureiro
- Então insiste, homem de Deus! Vai atrás. Você não é como eu, pode ir para qualquer lugar.
johannes
- Não há hipótese!
aventureiro
- Mas o que o leva a crer que ela gosta dele? Ou ela teve o displante de dizer isso! Que…
johannes
- Não. Foi assim…

/03 um pedido (flash back)
mulher e johannes
No camarote, a mulher abre uma caixinha de jóias e retira um rolo de papel. Ela desata o nó e carinhosamente desenrola o papel que entrega a Johannes.

voz de johannes em off
- É como você diz, tudo tem seu preço. Ninguém dá nada de graça.
Mulher
- Quando ele estava fazendo-me a corte procurou saber dos meus gostos e quando descobriu que eu gostava da música do clarinete, compôs ele próprio este solo dedicado à minha pessoa. Esse foi o seu pedido de casamento junto com o anel. E eu nunca tive a oportunidade de ouvir.
Johannes olha a pauta onde está escrito: Solo de clarinete com registo chalumeau.
voz de johannes em off
- Foi a primeira e se calhar a única prova de carinho que o miserável deu a ela. E ela…
Johannes enrola o papel e entrega à mulher.
johannes
- Não vou tocar.
Johannes vira as costas e sai enquanto fala.
johannes
- Peça a outro. Procure a orquestra do navio.

/04 assunto encerrado
johannes e aventureiro
O mesmo da cena 02.
aventureiro
- Foi castigo! Por você não ter levado a turma toda para o bem bom!
johannes
- Faltava uma brincadeira sua! Poxa, numa hora dessas…
aventureiro
- E quer altura melhor para uma brincadeira!?
johannes
- Tem razão. Não vale a pena ficar me lastimando pelos cantos. Vamos começar as aulas, então?
Levantam-se e abandonam o deck.
Céu estrelado.


aventureiro
- Vamos fazer assim. Eu lhe ensino o português e você me ensina o clarinete. Pelo que eu toco de flauta você acha que em uma semana eu já consigo tocar esse tal de chalumeau?
Fim


(Mané do Café)


Como terá sido


Há que se explicar como foi que a pauta com a música que o cônsul presenteou a esposa foi parar às mãos do velho Johanes e por conseguinte, meio às coisas que o escritor abandonou sobre as mesas do bar.

Se a imaginação não me falha, vou contar como foi:
Não sei se propositadamente ou se por um acaso, o aventureiro brasileiro passou a trabalhar como jardineiro do consulado Alemão em Buenos Aires. Nas horas vagas exercitava as lições passadas pelo companheiro de viagem, num clarinete de aquisição suspeita numa noite do Camiñito. É fácil imaginar-se que a patroa deva ter ouvido o seu instrumento favorito e, a mesma história, conversa vai, conversa vem… lá pediu que ele executasse o tão querido solo. Não se sabe porque cargas d’água o quase banido aventureiro resolveu voltar à terra e, não deu outra, foi apanhado pela Lei. Por coincidência estava na mesma cela em que o Johanes fora posto para se livrar dos que queriam deportá-lo para a Alemanha. E fica aqui uma grande dúvida que nem sei se é interessante. Comeu ou não comeu? Ele disse ao amigo que não.
(Como falhou um pouco, outros que queiram podem completar)


(Mané do Café)

A viagem de barco para o Brasil

Johannes olhava o porto de Hamburgo que desaparecia lentamente no horizonte. Não era o único. Felizmente para ele, chuviscava. Isso, permitia-lhe esconder as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto, mais pelo destino que calhou que pelo abandono da terra. Deve ser a última vez que vejo a Alemanha. L.
Agora que as coisas estão a melhorar economicamente, é que tinha de sair da Alemanha. Quem sabe se dentro de mais algum tempo eu já não estivesse preparado para a América?! E tudo por causa da política?!!... Se existia coisa sem interesse para Johannes, era a política. Nunca, mas mesmo nunca se tinha interessado por política. Nem mesmo quando a economia estava mesmo mal na grande depressão – com uns biscates e a tocar clarinete, sempre tinha arranjado um tecto para dormir e o que comer.
O problema do Johannes é que a política tinha interesse nele para mal dos seus pecados. A polícia política nazi tinha umas fotografias dele a tocar com notórios opositores do regime – a maioria desses notórios opositores já tinha “zarpado” para “mares” mais calmos. Naqueles tempos, o “mar” alemão estava cheio de “tubarões” e era fácil cair nele.
Nos interrogatórios “regados” a sopapos e chapadas, Johannes tentava explicar que não se interessava por política. “Eu só gosto de tocar clarinete”, repetia ele constantemente. Porém, era como falar para uma parede.
Podia ter jogado a “cartada” de aderir ao partido nazi. Conhecia muita gente que estava a dar-se muito bem. O maior problema é que Alemanha estava a tornar-se muito cinzenta. As pessoas com quem costumava divertir-se dividiam-se em dois grupos: tinham emigrado ou mudado para pior com o nazismo – o segundo grupo não era nada divertido para Johannes.

Johannes preferiu emigrar. Estava a bordo de um navio de passageiros chamado “…” Ia para o Brasil, onde tinha um tio, em busca de dias mais alegres.
Como não tinha grandes economias, ia em 3ª classe, o que não era nada confortável. Os passageiros de 3ª classe dormiam em dois compartimentos com muita gente – um para os homens e outro para as mulheres e crianças até 12 anos. Pelo menos não se sentiam sozinhos. Muda de cama uma vez por semana e três refeições por dia (pequeno-almoço, almoço e jantar). Quem se atrasava a colocar-se na fila, perdia uma refeição. Uma mistela de intragável, pensava Johannes. Todavia, a viagem demorava três semanas. O seu estômago falava alto e Johannes escutava-o.
3ª classe. A Alemanha atravessava uma época de grande prosperidade e só emigravam os opositores e quem era perseguido pelo regime. Muitos dos seus companheiros de viagem eram judeus que tinham perdido tudo. Bem, isso não é exacto, visto que ainda tinham as suas vidas – muitos outros já não podia dizer o mesmo. Passeio… só na 1ª.

O único que estava alegre era um aventureiro brasileiro que procurava animar o resto dos passageiros. Num alemão muito esquisito repetiu constantemente que tristezas não pagam dívidas. Johannes acabou por concordar com ele e puxou do seu clarinete.
Como ninguém protestou, Johannes continuou a tocar. Passado alguns minutos, ouviu o som de acordeão a acompanhá-lo do outro lado do compartimento. Depois, uma guitarra. A seguir uma harmónica. Finalmente, um violino.
O ambiente melhorou com alguns sorrisos a aparecerem no rosto de vários passageiros. Johannes não era excepção.

Os dias passaram e numa noite de insónia, Johannes foi tocar sozinho para o convés que os passageiros de 3ª classe tinham acesso - a parte de trás do navio fora das vistas dos passageiros de 1ª e 2ª classe. Tocou e tocou, pensando que tinha apenas a lua cheia por companhia.
Acabou por não ser o caso. Um tripulante abriu uma porta e foi falar com ele. Devo ter feito m… Mas não. Uns passageiros de 1ª classe estavam o ouvi-lo e queriam que tocasse para eles até ao sol nascer – a orquestra do barco acabava de tocar às duas da manhã desse por onde desse.
Johannes não se fez rogado.
Os passageiros de 1ª classe era um conjunto de foliões na sua maioria jovens que queria escutar jazz e tudo o resto proibido na Alemanha nazi. Para Johannes, era, mais ou menos, como juntar comida à vontade de comer – era difícil combinar melhor.
Johannes até tocaria de graça para o grupo dos foliões. Todavia, insistiam que partilha-se a comida que eles tinham à sua disposição. Johannes esforçava-se por comer calmamente quando o que lhe apetecia era comer à bruta.
Finalmente, o sol nasceu e Johannes voltou à 3ª classe. Um dos foliões deu-lhe alguns marcos em moeda. Fazem sempre jeito.

Johannes voltou ao convés de 3ª classe na noite seguinte. Um pouco após as duas da manhã, apareceu o mesmo tripulante, Voltou a tocar para os foliões da 1ª classe.
A cena repetiu-se nos dias seguintes sem grandes variações. O tempo estava óptimo depois da passagem do canal da Mancha – as noites estavam cada vez mais cheias de estrelas à medida que se aproximavam dos trópicos.
Ocupavam o ponto mais alto do convés longe das cabines onde os passageiros de 1ª e 2ª classe dormiam. Acabaram por fazer um baile improvisado com alguns a marcarem o rítmo. Johannes era o único que não dançava – era o único músico que não se revesava pois fazia a melodia.
Quando o sol se aproximava, o grupo tinha, por vezes, grandes discussões políticas amigáveis. Os membros do grupo discordavam de muita coisa, mas concordavam que “Hitler é um filho da p…”. O único que não o dizia (dizia outras coisas deles) era Johannes – a mãe do Hitler até pode ser uma excelente pessoa, pensava ele. Se calhar não tem culpa do filho que tem.

Os dias seguintes tornaram-se mais interessantes para Johannes, mas algo desconfortáveis. Tocar para o grupo de foliões era óptimo. Estava “preso” no “…” até a viagem terminar: gostava de tocar clarinete; a comida de 1ª classe é outra coisa e ainda caem uns trocos nos meus bolsos.
Um membro do grupo manifestava um interesse particular por Johannes: uma jovem alemã chamada Ângela. Os sinais eram claros apesar de ela aparentar não lhe ligar nenhuma. Tinha um aspecto altivo e algo distante. Porém, tocava e roçava no Johannes com uma frequência assaz convidativa.
Para Johannes, a Ângela parecia uma Válquiria saída de uma ópera de Wagner: bela, loura de cabelos compridos, mais alta do que ele um palmo, musculada quanto baste e uma mamas de chorar por mais. Na perspectiva dele, o problema é ser um passageiro de 3ª classe; se me aproveito, ainda apanho uma carga de pancada. Assim, procurava manter-se calmo e fingir que não era nada com ele.
Porém, a Ângela queria ter algo com ele. Numa noite, sentou-se ao pé de Johannes e começou a falar da sua vida. A dado ponto, falou que era casada com um diplomata alemão que estava na Argentina – o “…” parava no Rio de Janeiro e seguia, depois, para Bueno Aires. Johannes começou a ter suores frios. Um diplomata alemão?!.. E começou a ver a sua integridade física muito ameaçada. Mesmo no Brasil, pode contratar alguém para me tratar da saúde. Talvez definitivamente.
A Ângela continuou a falar, dizendo que o seu casamento era uma só de fachada. Tem pai que é cego. O seu marido necessitava de uma esposa para progredir na carreira de diplomata. Pelo que Johannes percebia, o marido de Ângela tinha uns gostos pouco recomendáveis na Alemanha nazi. Arriscasse a passar uma boa temporada preso. Johannes conhecia uns na Alemanha que tinham sido presos e espancados até mais não.
Johannes pensou por uns breves segundos. Colocou a sua mão direita discretamente nas costas de Ângela, o que significa a tomada de uma decisão. Ela não não se afastou. Johannes acariciou-lhe as costas e, progressivamente, foi descendo. Por fim, apalpou-lhe o rabo bem apalpado. Ela ficou surpreendida, mas sorriu para Johannes. Não há dúvida que o fomento do desporto por parte dos nazis tem os seus aspectos positivos.
A coisa continuou mas Johannes chegou à conclusão que é preciso ter calma e não ser demasiado notado. Johannes segredou algo no ouvido de Ângela. Ela foi falar com o tripulante que devolvia Johannes à 3ª classe e passou-lhe uns quantos marcos para a mão. Ângela passou a estar a uma distância pouco suspeita de Johann.

Johann estava sentado na cama do quarto de Ângela. A 1ª classe é outra coisa. Ângela olhava para ele de pé sem fazer nada. Johannes já tinha compreendido que tinha de liderar o processo, senão nada vai acontecer.
Levantou-se e pegou-lhe na mão. Conduzia-a até à cama e deitou-a. Quero vê-la toda nua. Começou a despi-la lentamente e dizer-lhe ao ouvido o que ia fazer com ela. Notou que os seios tinham ficado imediatamente rígidos como rochas. Um sinal muito bom.
Acabou de despi-la. Fez uma passagem com uma mão pelas costas de Ângela e ela arrepiou-se. Continuou beijando o corpo dela um pouco por todo o lado. Por fim, virou-a e puxou-a para si… Já nem se importava se o navio afundasse.

No dia seguinte, voltou ao quarto de Ângela. Voltou a despi-la lentamente, mas desta vez deixou-lhe os sapatos de salto alto. Quero vê-la bem. Abriu a janela do quarto para deixar entrar a luz da lua cheia. É mais do que suficiente para a ver bem. Disse-lhe para se levantar da cama e desfilar para ele a ver bem.
Ângela lembrava-lhe uma daquelas estátuas gregas da deusa Afrodite que tinha visto num museu em Berlim. A grande diferença é esta ser algo musculada.
Disse-lhe para voltar para a cama. Ângela deitou-se e Johannes procedeu de forma suave mas autoritária. Nunca estive com uma mulher tão alta e tão submissa. À primeira vista, quem diria que esta Valquiria é o que é.

Na noite seguinte, Johannes chegou à conclusão que não só era submissa como tinha algumas fantasias algo suspeitas. Eu só penso em dormir com gémeas ao mesmo tempo. Ângela falou-lhe que tinha a fantasia de ser raptada e ser forçada a ter relações contra a sua vontade. Esta não era a sua “onda”, mas fez-lhe a vontade.
Vestiu-se e disse-lhe para fazer o mesmo. Depois, pegou nela ao ombro como se fosse um saco de batatas. Deitou-a algo violentamente na cama. Disse-lhe para se agarrar a uma das pontas da cama e imaginar que estava presa por algemas a ela.
A seguir Johannes começou a “forçá-la” e ela a fazer a resistência da praxe que se impunha. Se isto fosse a sério, levava uma carga de pancada dela.
A dado ponto, Ângela gritou de prazer e um tripulante tocou à porta do quarto para saber o que se passava.

Johannes estava novamente no quarto de Ângela. Ela tinha gostado muito da noite anterior, mas Johannes não. Mesmo a brincar, não gostava de violências. Desta forma, procurava na sua cabeça uma alternativa que fosse do agrado dos dois.
Não lhe ocorria nada. Enquanto Ângela estava na casa de banho (um quarto com uma casa de banho própria?!...), começou a tocar uma música de jazz baixo no seu clarinete. A música ajudava-o a pensar.
Ângela entrou no quarto e começou a fazer um strip-tease. Pensava que era essa a intenção de Johannes – ela gostava de música de negros. A Johannes não lhe tinha passado a ideia pela cabeça, mas chegou à conclusão que devia ter pensado.

Os dias passaram e o ambiente no quarto era triste. No nascer do sol, os passageiros para o Rio de Janeiro tinham de deixar o navio.
Ângela queria que Johannes a acompanhasse até Buenos Aires. Johannes não concordou. Disse-lhe que eram dois navios na noite que se encontravam até ao nascer do sol. “De certa forma, o sol nasceu definitivamente para nós”.
Ela chorou – disse-lhe que o amava perdidamente. Johannes procurou consolá-la, dizendo que melhores dias viriam. Como é o que o brasileiro disse? “Tristezas não pagam dívidas”
Disse-lhe que também teria saudades dela. Sobretudo do teu corpo. É realmente muito mal empregue naquele marido. Johannes teve o cuidado de não dizer o que pensava. Tudo o que falou era o adequado para aquela ocasião.
Pena que o que para ela eram apenas jogos e brincadeiras, para ele… coitado.

O tripulante que costumava levá-lo para a 3ª classe tocou à porta.

Johannes colocou o pé pela primeira vez em terra brasileira. Levantou os olhos e lá estava o Cristo Redentor, lá no alto como lhe tinham dito. Terra nova, vida nova.

(Ivo Dias de Sousa)

Não foi bem assim


E agora tenho um reparo a fazer: o homem entrou e a gente pôs-se a ouvi-lo? Não foi bem assim.
Antes que a Isabel parasse de abanar os seus cabelos de fogo ao ritmo a que o Mané dedilhava o samba, antes que o Mané parasse de o dedilhar, antes que os inveterados da nicotina voltassem a pingar para dentro, antes que o rei do tabuleiro se imobilizasse no ar esquecido da guerra, antes que o Cristiano tirasse a mão da perna da moça que acariciava debaixo da mesa e o Sérgio se calasse devido ao arroto sonoro e histórico que o materializou oficialmente pela primeira vez no Tejo Bar, já o escritor me havia desfiado, à sua maneira característica de comentador desportivo sem pausas para respirar uma fiada substâncial de material autobiográfico, que apreendi vagamente durante o tempo impreciso que durou o meu embasbacamento habitual, o meu catatonismo revolto e angustiado que tantos problemas me arranja quando me acomete no trânsito ou ao balcão quando vou para pedir um café, a imagem em que o meu cérebro petrifica para aquecer o coração, a de um editor a nadar à pato no sinistro Aqueronte, implorando a ajuda do meu barqueiro velho e esquálido que o ignora rotundamente com o dedo médio em riste.
Só o ouvi realmente no momento em que confessou as suas próprias frustrações editoriais. E enquanto ele se apresentava, então para todos, com dois enes, já eu percebia que sem querer tinha deixado escapar algo de fundamentalmente belo, algo que mais tarde haviamos de querer reconstruir desajeitadamente com os dedos, a narração sempre impraticável de uma vida.

(Vitória F.)

Retrato musical

Round a 4 vozes

Eu gostava mesmo era de retratá-lo musicalmente, porque é a minha única maneira. Mas, depois de ver a partitura do holandês, desisti. O “conterrâneo” compôs em tempo real e todo o delírio do americano maluco foi posto na pauta. Sinceramente, não sei se poderia fazer tão bem, ainda mais agora que o assunto está mais distante. Porém posso dar a minha contribuição passando a limpo as folhas borradas de vinho e cerveja e colocando no sítio certo algumas notas que, percebe-se bem, só estão na linha errada devido lá terem ido pousar às custas de muito álcool ou então porque o autor fora contagiado pela esquizofrenia do retratado.

(Cristiano Holtz)

(…)

O retrato musical do nosso heroi despertou o interesse de alguns artistas e está prestes a fazer parte do repertório do Quarteto Ariadne, formado por Ana Rita Gonçalves, violino; Alexandra Bochman, violino; Katia Santandreu, viola e Margarida Moser, cello. Mas…

(Organização)
Eu vi porrada!

Foi no Tejo bar. Eu estava lá de bobeira quando de repente entra um sujeito de quase dois metros e entrega um papel de pauta musical para o Mané dizendo que era para trocar por outro que lá estava não sei onde. Não entendi direito pois não estava a par das coisas, só sei que o Mané disse que não trocava, que o Cristiano já tinha perdido um tempão para corrigir a partitura e que até já tinha uns artistas famosos querendo gravar a música e que ele gostava da música, que achava que ela era a cara do Scott Johnsonn e que… deu lá mais um monte de argumento ao que o outro, que fiquei sabendo era um músico holandês muito chegado a uns copos, também tinha lá seus argumentos. Disse que a outra havia sido feita num delírio e que ele achava que esta que trazia traduzia melhor a situação já que representava um pouco da esquizofrenia do homem e um pouco do ambiente do bar que possibilita esses acontecimentos. Até aí, tudo bem. Só que o Mané quando disse que botaria as duas músicas, o homem endoidou e já tinha mais de dois metros quando partiu pra cima do Mané. A sorte foi que o Cristiano ia entrando na hora e com uns dois ou três golpes de Aikido livrou o amigo.
(Jorge Dias)

(…)

O holandês levou porrada mas prevaleceu a sua vontade, falou mais alto o bom senso. E aqui vai a nova música, Duetto, que retrata o Scott Johnsonn.

Porém, arriscando a levar umas tareias, pois nem sempre o Cristiano está por perto, o Mané resolveu contrariar o compositor e publicar também a primeira. Se está tão ruim como ele diz, ainda assim pensamos que valha a pena pelas circunstâncias em que foi feita. E nada que um bom arranjo não satisfaça.


(Organização)

Round 4


(Jan van Basten)

Joe Doe e Scott Johnsonn

- Desculpe, não nos encontrámos já em qualquer parte?
- Não sei... talvez aqui?
- Não, é a primeira vez que venho a este bar. Moro na zona leste, sabe...
- Pois... não sei...
- A sua graça é?...
- Johnsonn.
- Ah! O senhor, por acaso, não toca clarinete?
- Não. Mas o meu avô tocava.
- Seu avô?
- Sim, meu avô, Johannes.
- Johannes? Johannes Schmidt? O que tocou com Kurt Weill e Bertolt Brecht?
- Sim, conheceu-o?
- Conheci-o no Rio de Janeiro. Você é igualzinho a ele. Daí a minha confusão. Sabe, a memória já atraiçoa a diacronia.
- ?!....
- Não ligue, coisas de velho... Permita que me apresente: Joe Doe?
- ?!...
- Eu sei, eu sei, mas é mais fácil de dizer que Jhussef Korowitczwinsky. Sou oriundo de uma família de judeus de Odessa
- Ah, bom...
- Que é feito do seu avô?
- Morreu.
- Morreu? Que pena ... há mais de cinquenta anos que ando à procura dele.
- Cinquenta anos?
- Sim, para lhe dar isto.
- Parece uma pauta.
- É, é uma pauta.
- Maxixe? Interessante. O senhor disse cinquenta anos? Onde é que se meteu o velho? Faz favor, viu para onde foi aquele senhor que estava aqui a falar comigo?
- Qual senhor?
- Um senhor assim ... já de idade...
- Não vi ninguém a falar consigo. Deseja beber mais alguma coisa?



(Segue a pauta do maxixe para clarinete em sib e clarinete baixo. Não consta a data, mas foi escrita entre 1938, ano que Johannes foi para o Brasil e 1940, ano em que o Café Vermelhinho acabou.)



(João Pimentel)



Tejo bar ao Sol


Um sol menino nasce tão cedo na Alfama
Que faz inveja - santa inveja, inveja boa
À Mouraria e à Madragoa

E eu que navego
Nas águas enluaradas do sonho
Pirateio novos rumos
Em viajeiro procurar
Aqui, Senhor, no Tejo bar

Capitaneio meu barco
Sem proa nem popa
De fantasia, em passe de mágica
Copo de cerveja ou rum da Jamaica

Velhos parceiros nas mesas:
Músicos, poetas, feiticeiros
Que depois de muito velejar
Acabam por se encontrar
No Tejo bar

Bar que beija Lisboa
Bem antes que Lisboa
Vá beijar outros bares

Tejo bar
Bela caravela
Nos versos que faço
A pensar em O'Neill
E no David
Do monumento de palavras

(Edison Nequete)

Relatório da estadia do escritor Scott Johnsonn no Hospital de São José em Lisboa, Portugal, pela enfermeira espanhola Aida Ternero


Venho ao Tejo Bar à procura do Mané porque o Johnsonn me mandou. Procure o Mané, disse-me, procure mas não grite, bata os dedos devagarinho contra as unhas dos outros dedos e antes que a noite acabe não se esqueça – mas não se esqueça mesmo - de acariciar um pensamento de ternura para o sorriso do Ricardo, que você não o conheceu mas a gente toda lá do bar já andou às gargalhadas com ele em muitos becos de inúmeras estreladas. O Scott não estava borracho, não. Estava mas era confuso, muito, quando acordou. A minha colega não lhe quis dar uma almofada porque - disse – depois os doentes levam para casa e os outros recém-chegados ficam sem uma esponja qualquer para apoiar a cabeça. Na verdade a colega costuma levar as almofadas para casa e vendê-las a seguir à loja Americana na Praça do Chile, mas em segunda-mão. Nos hospitais portugueses é assim, não é por eu ser espanhola, mas o Scott passou-se no segundo dia quando viu que a sopa Juliana da noite era a mesma do almoço com acrescento de farinha e água morna, pelo que decidiu basar a.s.a.p. logo que a porteira ficasse distraída com a novela.
Para apanhar o início da novela, pediu-me que lhe ligasse a TVI, o coitado, mas não sabia que iria dar logo com o jornal da noite e com a cara desse Berlusconi que pelos vistos anda a oferecer gajas aos chefes de estado por aí. Conclusão: mandou-me chamar aflito porque - disse – tinha ouvido que lá na Itália fizeram uma lei em que os honestos cidadãos fartos de baterem nas mulheres podem formar patrulhas e ir à rua proteger as meninas dos ataques estuprídicos dos imigrantes, os quais segundo as crónicas de lá seriam protagonistas de toda e qualquer porcaria que os jornais relatam.
Ao ler aquilo das patrulhas, o Scott achou que nunca é tarde demais para combater o fascismo ante e post -litteram, que ele era escritor e tinha que se pôr a andar, eventualmente a caminho de Nápoles onde haveria com certeza um ninho de revolucionários preparados para combater essa ideia louca da patrulha e dos imigrantes, e começou-me a falar no Caos que - dizia ele - é um orgasmo ficcional criativo, assim dizia, e eu a tentar convencê-lo que esperasse pelo menos até receber o resultado dos exames, pois bem podia ter alguma coisa grave e sem medicamento não há remédio. O único remédio para quaisquer doenças, disse-me, é fugir dos hospitais portugueses, isto aqui é pior que terceiro mundo, tirando você, mocinha, o resto é patrulha.
Assim foi, chiquito, deixou-me de prenda um cd fabuloso chamado Pynandí, Los Descalzos, só porque lhe tinha contado que gostaria, mais cedo ou mais tarde, de largar o soro e enveredar pelo caminho da música, desde que o meu avô me trouxe um verde acordeão de regresso da Rússia, onde foi visitar uma antiga amante comunista, desde esse dia longínquo, o único sonho da minha vida seria tocar acordeão nos becos de Grenada, se o meu braço não estivesse partido por causa de um hospital português mal organizado.
Mas essa é outra história, não tem a ver com o Scott, só vim mesmo para vos trazer os cumprimentos deles, e beijinhos em voz baixa tal como ele pediu, mas já agora devo dizer que não me importava nada de tocar o meu acordeão sentada nesse escorrega aqui em frente, neste lindo parque, criança, este parque é teu…

(Paola D’Agostino)

Escrito no Ar



Naquela noite fria e chuvosa em Alfama, o Tejo bar, como de costume, estava repleto de pessoas com diferentes feições e sotaques. Uma certa aura de mistério misturada com uma aparente disposição para o encontro fazia com que pequenos grupos de italianos, espanhóis, alemães, brasileiros, portugueses, cabo-verdianos e franceses (pelo menos foram estas pronúncias que pude reconhecer), partilhassem olhares, gestos, declamações, algumas palavras na língua alheia, acordes no violão e algumas canções. Este clima foi modificado bruscamente com a entrada daquele homem que se apresentou como Scott Johnsonn. Mesmo se portando de uma maneira visivelmente sob excessiva influência do álcool, somado ao péssimo português falado, Scott Johnsonn prendeu a atenção de todos com suas narrativas tão exóticas e cambaleantes quanto sua figura. O que sugeriam ser narrativas autobiográficas.
Contudo, aquele tom vacilante do Scott Johnsonn, de súbito, se transformou em um eloqüente e insurgente discurso. Igualmente súbita foi sua queda após pronunciar aquelas palavras à porta do Tejo bar. Por sorte, distraidamente havia deixado minha câmera ligada desde a bela declamação de Clarice Lispector feita por Mariana antes da chegada do Scott Johnsonn, permitindo a captura em áudio. Não sabíamos naquela altura que aquele homem que teve uma vida praticamente livresca iria deixar a sua última obra escrita no ar:
“Somos todos judeus alemães!” Não se engane foi apenas o Campo de Concentração que se modernizou. Antes e, não obstante arduamente, vivêssemos em uma época de servidão voluntária como bem diagnosticou La Boétie. A servidão ganha agora ares de um sinistro genocídio auto-imposto. Este escrito fará mais sentido se lido num domingo de noite. Caso isso não coincida, imagine-se envolto pela presença de uma segunda-feira rotineira e talvez já seja suficiente. Bem- vindo à Era dos micro-genocídios, aqui o seu corpo cruelmente morto não será necessariamente jogado em uma vala comum, afinal, na melhor das hipóteses, nós mortos-vivos-padrão nos encaminharemos, mais cedo do que gostaríamos, a alguma forma de transporte público lotado para depois termos a honra de sermos explorados. Um verdadeiro privilégio para um contingente cada vez menor. Isto não é tão somente a expressão indignada de um vagabundo insatisfeito com a sua própria vida como já me questionaram, é mais um ruído de alguém que pensa que a nossa pretensa harmonia, mais do que enlouquece, mata. O cigarro me advertiu: o Estado mata! Aliás, para lembrar uma “equação” foucaultiana de um de seus cursos aritmética da existência aplicada à guerra, o Soberano que fazia morrer e deixava viver, entretanto, o Estado contemporâneo faz viver e deixa morrer. Então não me acusem de cinismo, olhe para nossa organização e verá bem mais... Ou então, antes de ir trabalhar repare bem ao escovar os dentes na sua cara de zumbi. Mas tente se alegrar, os tempos são outros, você morreu, mas deixaram-te viver!
Mas antes de sair repare bem na sua casa, em como a solidão transformou a nossa relação com os eletrodomésticos, esses arautos da vida “moderna”. Abrimos a geladeira para meditar, ligamos a televisão para cuidar de nossos filhos, observamos pelo computador o que se passa lá fora... Se estes espantosos atos lhe dizem alguma coisa, então por que não rebatizar esses nossos companheiros?! Geladeira-oráculo, Televisão-babá, Computador-janela. É favor não me classificar como romântico antes de terminarem de ler. Ao mesmo tempo diria que isso é um julgamento quase inevitável para quem está praticamente etiquetando os seus costumes com um tom de desaprovação, algo que pode realmente ser lido como um saudosismo de uma comunidade perdida. Contudo, prefiro me inspirar no Bruno Latour que propôs de uma maneira desconcertante: e se jamais fomos modernos? Então, respondo perguntando: isto faz de nós pós-modernos-medievais?! Logo, comunidade nunca existiu, saudade tampouco! Então foi assim e Hakim Bey em parte me daria razão: mentiram sobre bem e mal, sobre o nosso amor carnal, incutiram massivas doses de medo, umas porções generosas de culpa e boas pitadas ressentimento... Pronto! Está dada a receita do pão-nosso-de-cada-dia. Só não se esqueçam de rezar antes da refeição e incluir nos agradecimentos o mestre-cuca Nietzsche, afinal ele que traduziu para o alemão o nosso cardápio favorito.

(Alex Reinecke de Alverga)