sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Clarinetes e lendas

O som ímpar de um clarinete em terras árabes


Ao ver a placa Johnsonn abrandou o carro: Cacela-Velha. Era aqui que lhe tinham dito para virar. Estava desconfiado; além de Vila Real, que tinha um centro realmente bonito, só lhe tinham mostrado aldeamentos: aldeias novas “para inglês ver”. Ora, Johnsonn não era inglês e não queria ver casas com motivos estilizados nem arranha-céus em avenidas junto ao mar.
Ao aproximar-se do pequeno aglomerado caiado parou o carro e desceu. Havia duas ruas. Decidiu seguir a direito e foi dar a um largo com uma igreja, por detrás da qual se via um forte. Em frente havia apenas o mar, estava no alto de uma muralha sobre um braço de mar que formava uma península — o fim da Ria Formosa.
Uma suave, mas fresca maresia não o deixou deter-se muito tempo. Virou-se de novo para terra e decidiu explorar o largo à direita e as ruelas de nome árabe, homenagem recente aos poetas da terra (e quem, vivendo em Cacela não se tornaria poeta?), ouviu ao longe um clarinete. Naquele cenário nunca imaginou ouvir tal som e no entanto os harmónicos ímpares têm um timbre inconfundível.
Através de uma janela aberta ouvia-se alguém que ensaiava. Johnsonn não resistiu a bater à porta, aquele som familiar trazia-lhe saudades do avô; e curiosamente, este clarinetista tirava do clarinete em si bemol um timbre muito semelhante ao do velho Johannes. Johnsonn não sabia muito de música, apenas o suficiente para saber que o som de cada instrumentista é único, feito de uma cumplicidade construída ao longo de muitos anos com o seu instrumento.
À janela veio um homem louro, alto, de meia idade. Com pronúncia acentuada, perguntou-lhe quem era. Johnsonn respondeu-lhe em inglês que não falava português. Postos de acordo sobre a língua, um com sotaque britânico e o outro norte-americano, Johnsonn contou-lhe que reconhecera a sonoridade característica do seu avô Johannes. O homem apresentou-se: “Alastair Tilley, fui aluno e colega do seu avô. Se reconheceu o som dele na minha forma de tocar, então é o maior elogio que alguma vez me fizeram!”
Alastair convidou Scott a entrar e ofereceu-lhe um chá fresco. Contou-lhe que tocara em Nova Iorque, na Filarmónica e de como depois dos concertos percorria os bares de jazz da cidade com Johannes. Lembrava-se de Scott pequenino quando aparecia nos ensaios pela mão do avô. Depois da reforma Alastair instalou-se em Cacela, onde se ouvia o mar, o vento, as cigarras, os grilos, as andorinhas — em noites de lua cheia o choro das mouras encantadas presas no poço do castelo — e agora os clarinetes. Ficaram toda a noite a relembrar velhas histórias de Nova Iorque. No dia seguinte Scott tinha previsto ir a Tavira, de cuja beleza ouvira maravilhas.

Acordaram tarde. Meteram-se na velha carrinha de Alastair e rumaram à cidade. Ainda em jejum subiram a colina em direcção ao castelo. Depararam-se a meio do percurso com o Museu, onde a sombra do pátio interior convidava ao almoço. Atravessaram o patamar sobre os poços fenícios cobertos com vidros e nem quiseram pensar que rituais teriam ali sido praticados.
Enquanto se deliciavam a conversa fluía novamente. Quem seriam estes fenícios e como seria bela a Tavira de então. Um povoado à beira rio, o mar ao largo, suave e quieto, entre ilhas, dunas e canais. Só do outro lado da ria havia ondas e correntes fortes. Atravessados os areais, a serra ao longe, um rio largo, peixe em abundância e terras férteis. Uma colina como um varandim sobre a paisagem (e sobre quem tentasse aproximar-se). Em suma, o Paraíso!

Continuaram depois a subida. Do castelo-jardim vê-se tudo em redor. Ao perto dezenas de igrejas e pontiagudas quatro-águas em contraste com as paredes alvas. Mesmo em baixo o jardim à beira do Gilão, entre o mercado e a Câmara Municipal.
Encavalitado na muralha mesmo por cima da igreja de Santiago, Alastair abriu o estojo do clarinete baixo e começou a montá-lo, peça por peça. Ali do alto, com a ressonância das muralhas em redor, os graves cantavam docemente. O som quente envolvia o jogo das crianças no jardim e o ruído dos carros deixou de se ouvir.
Começou por Beethoven, para a amada... ao longe..., o clarinete era um jovem cheio de saudades, amado e apaixonado, num lamento murmurado e doce.
Depois animaram-se. Se as saudades apertam, o ondulado do chorinho tira-lhes o peso. Ao som do exotismo brasileiro, de melodias volteadas e contra-tempos sensuais, um véu azul esvoaçou sobre ambos. Do alto da torre uma sombra de mulher ondulava, visível mas transparente...
Alastair parou de tocar e subiram à torre. Deram a volta até à escada tortuosa de tão pisada, mas como em todas as histórias de mouras encantadas, encontraram apenas o véu e um leve odor a laranjeira e almíscar. Dali avista-se Espanha, o Califado de Córdova. Mais longe, do outro lado do mar, a terra longínqua dos seus antepassados. Sempre que podia ela voltava para olhar o magnífico espectáculo e estas gentes louras que agora apareciam, como gostaria de falar-lhes...

A tarde passou-se entre vielas, ruínas, palácios soterrados, igrejas e mais igrejas... “Muitas igrejas há nesta cidade!” disse Scott. “Parece aqui perdida no reino dos Algarves, mas deve ter sido um centro religioso de importância.” “Seriam algumas mesquitas convertidas”, respondeu Alastair. “Na realidade toda essa cultura foi esquecida até há pouco tempo — só agora se estudam com afinco esses poetas e a riquíssima cultura que essas gentes trouxeram. O povo, claro, sabia-o nas suas alpergatas ou nos albericoques do estio. O povo sabe sempre mais do que quem vê o mundo pela janela do palácio.”

Scott sabia que no dia seguinte partiria de regresso a Nova Iorque. Tinha passado o dia com o avô, mais perto do que alguma vez se sentira desde a sua morte e tinha encontrado em Alastair um amigo.

Quando a luz se tornou alaranjada nas fachadas desceram à praça do Al-Mashrad, o teatro. Não resistiram a entrar na pequena livraria. Pela travessa passaram ao mercado, onde jantaram junto ao rio.
Mais uma vez vieram à baila as orquestras e os bares nas caves nova-iorquinas. O maestro que melava tudo, até Mozart: “always legato”... Um outro, já meio surdo, que nem reparava se a orquestra não estava toda junta. Ah! Mas quando vinham os mestres dirigir, que delicia! Que maravilha suprema... fosse qual fosse o programa...
Depois dos concertos fugiam para as catacumbas do jazz. Uma nota ao lado, um engano e quantas vezes nascia daí nova moda. A risota e a pura diversão, o prazer de tocar com os amigos, a genuína partilha sem direcção nem partitura.

O restaurante fechou e a conversa parecia não terminar. Continuaram sob a lua sentados num banco da ponte romana, a meio do Gilão a olhar Tavira adormecida.
Manhã clara, de volta a Cacela, Scott pegou no seu carro e tomou a direcção do barlavento rumo ao aeroporto. Do avião viu as dunas e as cidades brancas do velho Al-Gharb, sentia-se confortado como uma criança e adormeceu. Desde que o avô morrera não pensara poder voltar a sentir-se tão próximo.

(Helena Romão)

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