segunda-feira, 6 de julho de 2009

Um mortal de papel




Tantos papéis!
Voavam esbranquiçados na noite luzidia e turva. Folhas de papel A4. Por momentos pensei que o vento tinha libertado o lixo acamado nos caixotes ou então poderiam ser papeis de crianças que brincaram de dia no jardim perto do bar, voavam pelas ruas íngremes onde ao corrermos podia constituir sempre uma aventura melindrosa e até brincalhona, um bailado.

A correr, defendo-me do asfasto, do vento e das paredes incertas das ruelas, tentando não olhar para os candeeiros, para a lua para não me distrair, abstrair-me ou ainda ir ao encontro de outra coisa qualquer e desistir. Concentrei-me.

Na mão esquerda tinha o meu casaco e a mochila para trás das costas, corria atrás das folhas seguindo o instínto das que devia apanhar, uma delas rasguei-a, com a força de a trazer até mim, outra voava escada abaixo do beco. Foi quando pensei que só tinha de apanhar uma que fosse.

Não me podia era distrair, olhar para os candeeiros, para noite, para lua, para nada, o objectivo era apanhar uma folha de papel. Mas estas esvoaçavam cada vez mais alto, então, ja me divertia a tentar apanhar as que voavam altas e faziam--me saltar. Umas esvoaçavam directas ao rio; Portanto, o pessoal da outra margem amanhã terá incentivos para acordar, quem sabe nem dormir a colher letras de letras e palavras. Por um dia esqueçam que vão dormir mais um pouco na multidão de colchões humanos que são trazidos pela manhã, em forma de gente.
- Vão estar acordados... imaginemos com os corpos ondulados à procura de outra e outra folha.

Por cá, deste lado do tejo, os moradores manifestavam-se devido ao barulho que se fazia sentir no bairro, apesar da brancura dos papéis dizerem o contrário. E, foi então que encontrei, uma coisa, como uma prosa ainda por construir e alguns esboços de poemas.

Então aquele homem de olhos repteis, porte arrogante, mas desgrenhado e sem medo de cheirar mal que entrou pelo bar a dentro, olhando para todos os ângulos e saiu quando alguém o olhou estava perdido. Pensa-se.

Encostada numa parede na penumbra, ouvindo o ruído dos meus conterânios que habitavam o bar. Lia e tentava descortinar, a letra e identificar o olhar fugídio reptil daquele homem que tinha tirado a todos o sossego e a alguns aquecido mais a ”vida morna” que se fazia sentir nestes tempos.

Para não ouvir mais comentários, nem murmúrios sequer, lia as duas folhas que vieram cá parar, em pé com as pernas cruzadas.

Naquela noite neste bairro voavam palavras, prosas, histórias de História, poesias, tantas coisas que alguns até pensavam enriquecer quem sabe… acrescentando alguma coisa às palavras, à história até poderia dar para editar um livrito, ou ao jeito do bairro dizerem "que estava pronto a sair" acabado de escrever:
"Não fosse esta, uma Nacão de poetas" .

Só me resta saber mais do homem que olhei no bar, com olhos de reptil; rã exageradamente altivo, fato beije cheio de manchas de óleo, que se apresentou como "jonhnn", o homem dos dois "nn" como aqueles, que falam mais alto quando dizem o apelido.

Apresso-me a ler um dos papeis:
"Aposentei-me não sei se de escritor ou retratista de histórias, mas vou fazer esta viagem. Vou viajar até ela. Se o meu amigo a descobriu na sua tese de Mestrado em "Gente do Povo-que sabe Cantar". Eu vou sua procura- la.

E entrou mundo a dentro, melhor europa a dentro. Mas antes desta aposentação vou encontrar a musa morena, de cabelo farto, baixa e forte, como se de uma rural se tratasse, mas que deu sabor às palavras, aos versos e que enriquecia as ruas mouras de uma daquelas cidades para os lados de Espanha ou Portugal.

Enfio-me no primeiro barco que vá para Espanha, digo às tias que parto por uns tempos para Hamburgo para descançar, pois ando frágil e cansado, farto de me assustar com os sons vindos deste casarão, ainda oiço os passos do meu pai e o ranger da porta do meu quarto pela tia Rita a verificar se durmo, se o naperon do copo de água está direito.
- Não, Não é desta!

Enfio uns fatos de inverno na mala preta e escondo-a no jardim e vou: eu e as minhas folhas atadas por um cordel, o meu diário gráfico em branco e entro no primeiro barco que vá para Espanha, nao melhor ... "Madrid".
-Se ela vivia numa cidade, se era uma zona mourisca e se cantava como só os árabes sabem apregoar. Vou parar em Madrid; Logo de vê...

Embarquei, sabia que se dormisse podiam roubarar-me a bagagem e perdi-a. Na verdade perdi-me. Sei que vim parar a Paris, vagueei por lá, encontrei-me com alguns esquerdistas, que tinham um semblante desgastado e outros que acreditavam que podiam fazer uma revoluçao. Todos eles tinham uma paixao em comum pelo vinho, outros até pela Heroina.

Havia então, uma revoada de pensamentos ideologicos e quando percebi que estava a manifestar-me entre extremistas de direita com ar saudavelmente animalesco que tentavam brilhar nas lentes, dos homens e mulheres de esquerda, resolvi fujir. Nunca fui dado a confusões. Ainda por cima, já as tias deviam de andar à minha procura, nos postos de correio e hospitais da Alemanha.

Chego a uma estação e falo do meu sonho, havia por lá uma mulher ávida de dar informações:
"- Essa é uma história portuguesa, a mulher que o sr. jonhson ou jonhn fala é da Severa! - ouvi, sem falar.
"-Não é para estes lados... é lá para Mouraria, num desses bairros, mas a história é antiga sr. Jonn..é assim que se diz?
Sim. sim..
- Cantava Fado e morreu nova foi da vida...
e continuava a falar sem coordenação. Senti. Afastei-me, os meus ouvidos faziam ressonância, a voz dela era alta, zangada, ao afastar-me, agradecia, agradecia, até ficar com os rins a picar de dor.

Parti, melhor fuji. Queria ver a minha musa, sei que era uma prostituta, que todos os homems a cobiçavam só com o rolar do cabelo, sei que era do povo. Mas como ouvi dizer que havia gente de brazão a juntar-se a ela, à sua carne, à sua pele perseguia-a, cada vez mais àvido de ver algo igual a ela, que cheira-se a ela, a tal que diziam ter feito nascer o dito fado. Cântico, dito e cantado pelo povo em sitios com aspecto medieval, tavernosos. Os quais procuro.

Quando cheguei a Portugal ja não tinha sapatos, os meus pés eram iguais aos dos meus companheiros de estação, cheios de chagas, foi quando roubei uns sapatos ao outro que dormia aqui ao lado. Depois de uma boa refeição e fortalecido decidi dirigi-me a um dos locais onde ainda não tinha estado. Estava com medo, porque não encontrara nem severa, nem taberna, nem musas, nem fado onde se possa entrar sem umas boas notas no bolso. E onde as prostitutas são todas magras e adoentadas, pelo menos lá para o lados da musa de nome "Severa".

Nada que se parece-se com a roliça fadista. É assim que chamam aos amantes dessa musica, "fadistas". Mas estava decidido, depois de ter aprendido a roubar meias, cuecas, sapatos, ser rejeitado nas festas sociais em Paris e ter dormido como moribundo, mas de sangue azul, tal como faço questão de frisar quando estes papéis forem borda fora.

Entrei naquele bar, olhei, fuji. Vi os bares todos ali dentro, as tertúlias de Paris, a casa de amigos de amigos, as noites animadas com artistas circo, a dormência das pernas atacou-me, o zumbido voltara de novo, a cara dela, os olhos, ainda toquei na perna........."

Foi isto que li, há mais qualquer coisita, aqui, ali. Na manhã seguinte fui à estação de Santa Apolónia e um homem de media idade, que dormia por ali, disse-me:
- Quê! um tipo com ar esquísito que andava sempre com um saco agarrado ao peito?" - outro dizia - Não sei.
Outro, só para participar dizia:
-"Sim, aquele gajo esquisito". Andava aí agarrado a um saco.... murmuravam e ao olhar revivi por momentos a identicação dos pés em chaga do meu desconhecido mortal.

(Paula Boavista Boto)

2 comentários:

  1. Numa manhã muito de domingo com sol, alguém me deu um tópico e deste tópico,nasceram outros contos sob todas formas e desses contos, nasceu este

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