segunda-feira, 13 de julho de 2009

Sem título

Scott Johnssonn. Mais parece nome de sueco, que eles é que dobram os ennes, à brava. Mas não sei se é o mesmo fulano que encontrei por breve período no metro de Paris. Eu costumava passar regularmente na Bastille a deleitar-me por algum tempo com a música do Damian, um americano, que ali tocava o seu contrabaixo todos os dias entre as 3 e as 6 da tarde, o que lhe permitia treinar e ganhar algum ao mesmo tempo. O Damian era razoavelmente conhecido como músico do outro lado do Atlântico, mas vivia agora em Paris, desconhecido e quase pobre (tocava 2 vezes por semana num barzeco de mais ou menos jazz ali ao pé das Halles), numa chambre de bonne do 17ème.
Uma tarde dou com ele acompanhado por um branquelo – era o Scott Johnssonn--cantando velhos blues, e o conjunto fazia arrepiar a pele todinha até dos franceses mais renitentes. Durante uma semana, foi assim: um tocava, o outro cantava, o pessoal juntava-se e não despegava, entabulavam-se conversas, relações, flirts, paixões, e só desandavam dali quando o Damian dizia: that’s all, folks. Isto depois do Scott cantar “Dry your eyes” (se querem explicações, peçam) -- dizia ele que era “a melhor coisinha que o Neil Diamond escreveu”.
Primeiro pensei que o Scott era cantor, mas logo me desenganou. “Eu sou mesmo é escritor. Cantar é um gosto secreto que apenas exerço quando estou longe de mim.” Não me perguntem o que isso significa, também não sei, ele não explicou, acho que era uma frase de escritor.
Durante essa semana quando saíamos do metro, íamos comer num africano meio escondido ali para os lados de Guy Môquet e por lá ficávamos até tardias horas entre música e histórias de todo o mundo, assim um bocado como no Tejo Bar. E foi numa dessas noites que o Johnssonn nos fez um relato, afirmou ele que palavra por palavra o que lhe fora contado em herero, mas eu cá por mim acho que ele é que escritou (não tenho mesmo jeito nenhum, aqui precisava do Mia Couto para ele inventar a palavra certa) na hora. E digo isto porque herero era língua que ele não falava. Reproduzo a partir da gravação feita pela Khadi, pois tanto quanto sei é exemplar único da prosa do escritor:
“este é o meu lugar. na ágora. embora não o saibam os que aqui passam os dias, nem os que só passam. de todos escorregam por mim os olhares, detendo-se uma infinita fracção de segundo nos meus pés. lindos os meus pés, grandes, esguios, elegantes, nem parece que já andaram tanto, tanto. tanto que encontraram este lugar, o exacto lugar para eles. poisaram-se num degrau e eu neles. tornam este lugar mais belo, são como uma escultura que ilumina a ágora. por aqui a meus pés passa o mundo, o mesmo por onde eu passei. gentes de todas as partidas. falam, acenam, riem, choram, dançam, por vezes um par passa enamorado. soube o que isso é. meus pés já tocaram outros pés apaixonadamente. há muito, muito tempo, lá muito longe. esqueci. o amor esquece-nos e nós a ele. depois outros pés vieram batendo a terra, mais infernais que um batuque. lançaram-se contra os meus, pregaram-nos à terra, foi aí que toda eu entrei neles adentro. adormeci. depois (horas? dias?), puseram-se a caminho. mato, mato, mar, barco, mar, mar, mar, mar, mar, terra, mato, mato, gente. ágora. menos mal: pés de todas as cores, tamanhos e feitios. estancaram, pesados. esqueci tudo. o amor, a morte, o rapto, os mexericos, a melhor amiga, o tempo, as faltas, o riso, o choro. ficaram só palavras para dentro dos pés. agora, neste momento mesminho, seus pés se pousaram diante dos meus, face a face dos pés, reconheci, bonito, sim, nossos pés humanos nos degraus. por isso estou contando o que esqueci. esvazio-me. finalmente. estão-me morrendo os pés. vai.”
E penso que ele foi.
(Grace Nazaré)

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