segunda-feira, 6 de julho de 2009

O rio, ou de um encontro no Tejo



Seria início da Primavera, a tarde ia já escura, o rio corria cheio. Dentro de meia hora, começava uma sessão do curso/grupo de psicodrama. Nem só ensino, mas não ainda terapia. Uma das coisas meio loucas em que me meto, por amor aos grupos. “Se Cristo voltar à Terra, será na forma de um grupo”, disse o J.L. Este, cuja quarta sessão começava daí a pouco, era um grupo sui generis, só de mulheres, por um lado cheias de vontade de “mergulhar” nessas técnicas psicodramáticas, metade da psicologia metade do teatro, mas por outro temerosas com a exposição pessoal que isso poderia trazer. Claramente, urgia uma sessão diferente, marcante, verdadeira, para que aquele conjunto de pessoas se transforma-se num verdadeiro todo, superasse as resistências, se permitisse confiar e fluir. O que fazer?

Aproximei-me do cais, brincando com os limites do passeio, deixando que parte do meu pé ficasse suspenso no vazio, com o rio em baixo. Era um hábito, quase um tique, ou mesmo uma superstição: “Se te arriscas, a inspiração vem e salva-te!”. Fechei os olhos, abri o corpo às sensações e imagens que vinham do rio que fluía lento abaixo de meus pés.

Apanhei um pequeno susto, um sobressalto, no momento seguinte, que quase me fez desequilibrar. Senti que não estava só. Ao meu lado direito, a poucos passos de mim, um vulto, da minha estatura, parecia emular os meus ligeiros movimentos. Fiquei momentaneamente confundido, sem perceber se se tratava de uma ilusão de óptica, de um reflexo, de um efeito do lusco-fusco, ou de uma visão da morte, como se ela adivinhasse em mim um intento de mergulho. Talvez fruto das minhas leituras recentes sobre a angústia de morte? Tudo isto me passou pela mente naquela fracção de segundo que mediou entre a percepção daquele fantasma e o dar-me conta de que era, afinal, um homem, de carne e osso, que confirmou a sua materialidade grunhindo uns gemidos ininteligíveis, guturais, mistura de voz humana e instrumento de sopro, com um não-sei-quê de antigo, de velho, de bafiento.

Do susto, passei de imediato para uma sensação de angústia, de temor, antecipando um mergulho daquele sujeito no rio (curioso, escrevendo estas linhas recordo agora que parecia mais ser o rio a querer lançar-se sobre o homem…). Sem me aperceber, gritei, um grito que se projectou como um braço sobre o peito dele. Também ele se assustou, não me tinha visto. Estava claramente perturbado, um esgar de ausência, ou melhor, uma expressão de quem acabava de chegar de um outro mundo. Estrangeiro, claramente estrangeiro. Avancei para ele, não consigo lembrar-me do que disse, mas soube que não ia deixá-lo ficar sozinho. Entabulamos uma curta troca de palavras, chamava-se Scott, era escritor, o português dele confirmava o seu aspecto, apercebeu-se de que eu temi pela sua vida. Recordo-me que afirmou que tinha estado essa tarde com um angolano, escritor também ele, que tinha ficado com a mesma cara que viu em mim: a da proximidade da morte.

O tempo passava, as alunas esperavam-me, Scott não podia ficar só. “Queres vir comigo a uma aula?”. “What?”, respondeu. “Vem comigo, vou dar uma aula sobre uma forma de trabalho com grupos chamada psicodrama, não podes não gostar. Ainda por cima, vais conhecer nove mulheres giríssimas, vamos contar histórias e talvez dramatizar alguma, quem sabe, a tua?” Eu próprio não acreditava que estava a dizer aquilo, que situação mais absurda, levar um desconhecido, perturbado, para uma aula, sem aviso prévio. Mas tampouco podia deixar de o fazer, tinha a clara sensação de que estava a fazer o que tinha de ser feito. Scott nada perguntou, simplesmente começou a caminhar como se fosse ele a guiar-me para a faculdade onde a sessão decorreria.

Já durante o caminho, de pouco mais de uma centena de metros, até à escola, notei como se transformava aquele homem. Eram os olhos, o olhar, que parecia começar a projectar histórias, como se a vida de súbito encontrasse uma canal e se desmultiplicasse em narrativas possíveis. E tudo isto, num quasí-silêncio, quebrado aqui e ali por uns nomes e palavras soltas, em inglês, e por uns sorrisos que me dirigia. Quando paramos, para atravessar a última rua, encostou o seu ombro ao meu, como se me tirasse as medidas e confirmasse que poderíamos trocar de roupas, se precisássemos. Eu, mais do que preocupado, começava agora a estar fascinado. Levava para a sessão um personagem, um autêntico personagem. Levaria também o autor?

Atravessei os corredores da escola, labirínticos, e mais de um olhar se voltou, efeito da presença daquele ser, que tanto poderia ser um convidado de honra, com todos os PhDs e Cum Laudes do mundo, como um refugiado a pedir asilo político. Ou asilo emocional, que algo cheirava nele a cachorrinho órfão de pai e mãe e irmãos. A minha mente esforçava-se por encontrar uma linha coerente para organizar as duas próximas horas da minha – das nossas? – vidas, mas já subindo o último lanço de escadas decidi seguir a lição mais importante que me deixou o Sr. Francisco (diz-se da Holanda, mas a sua geografia é demasiado sinuosa para ser suportada por tão plano país): “Aja duas vezes antes de pensar”. Deixei a mente então a trabalhar em ponto morto, e passei à interacção, as alunas esperavam-me já, quase todas, e Scott foi, ao entrar na sala, o foco de todas as atenções. Entramos e começamos a afastar as mesas, fazendo um círculo com 11 cadeiras. “Team di futibol?”, disse ele, e depois de um curto e espontâneo sorriso sedutor, caiu a pique numa tristeza que, de tão triste, invocou a criança abandonada de todos quantos ali estávamos, naquela roda.

Não tive tempo nem para as apresentações, que, de facto, eram desnecessárias. Estava ali um homem. Ponto. Era, todos os demais sabíamos, o que nos tinha faltado nas sessões anteriores. E não era o género masculino, não, o que estava em causa. Era a verdade humana, o sofrimento exposto numa face, a história toda de uma vida naquele silêncio, naquele turvado olhar onde, como minutos atrás, o Tejo corria, esse Tejo que corre em todas as aldeias aquém e além mar. Quebrar esse silêncio seria sacrilégio, deixá-lo demasiado tempo poderia ser angústia demais para o grupo, assim, de chofre, sem sequer uma única palavra minha. Acordei do limbo pelo som da minha própria voz: “Scott, o que vê? O que sente?”

O que saiu de suas entranhas foi um misto de ladainha e cacofonia poliglota, das quais apenas consigo reproduzir “Beckenbauer, Partido del Siglo, Schön, liebe, Heraclitus, zug, river, I see a river…”. “Vejo um rio”, isto eu ouvi claramente, e fui atrás da imagem, como um urso segue o cheiro do mel, e aquele mel tinha um cheiro intenso. “Como é esse rio, Scott? Diga-nos como é esse rio…”. A minha mente tentava, aqui e ali, entrar em cena e controlar tudo. Uma voz em mim dizia: “Mas nem fizeste o aquecimento, elas nem sabem que ele é, ele não sabe quem elas são, que fazes??? Pára!”. Felizmente conhecia bem essas vozes e mandei-as passear. Aquecer aquilo que está em ponto caramelo? Vai acabar torrado! Deixa correr, este homem precisa de se exprimir, não tenho de o proteger, ninguém o conhece neste grupo, ele sabe que pode confiar em mim e, além disso, parece empenhadíssimo em fazer este jogo, mergulhar neste momento. E deixei correr.

“Este rio ser escuro, estreito, e chamar por mim. Este rio tem caros… tem carras… no fundo há… haver…”. “Há o quê?”, disse a Alexandra. “Cars and faces. This river calls for me, must dive.” A entrega daquele homem surpreendia-me. Amais, naquele contexto, onde uma semana antes tínhamos passado duas horas a falar de resistências à entrega… Disse-lhe: “Scott, quer mergulhar nesse rio?”. De olhos fechados, como se lesse um livro antigo, declamou: I hate catching spiders. Still, a man's got to do what a man's got to do”. “Temos letrado!”, sussurrou-me a Guida.

Pedi à Madá o seu lenço longo, azul, que quasi sempre trazia ao pescoço. “Posso?”, e estendi-o no chão. “Scott, aqui está o rio, como há pouco. Que queres fazz.?”. Não cheguei ao fim, ao longo da minha frase o corpo dele recuou um pouco e depois inclinou-se, num movimento ágil, puxando o lenço para cima de si e deixando-se girar, estendido no chão, de barriga para cima.

Morto. Parecia um morto, de mortalha de morto, azul cobalto, muito azul e no entanto morto. Baixei as luzes, quase ao mínimo. Todas as que estavam sentadas em cadeiras, num movimento quase coreografado, se sentaram no chão, apertando o círculo. Se alguém entrasse agora naquela sala, pensaria tratar-se de algum bizarro ritual, talvez impróprio para uma escola superior. Felizmente, o grande “ψ” que se pode ver na entrada da faculdade tem as costas largas…

“Pense em voz alta, Scott”. Nem me dei conta, mas estava a tratar por “Você” este homem que, na rua, tinha tratado por tu… Coisas dos contextos… “Este rio chamar por mim desde sempre, estar nos meus sonhos desde criança. Era antes muito forte, wie ein zug, era uma massa de água forte como um train, trem”. “O que sente, Scott?”. “Mein Herz, my heart, o meu coração, muito assustado, muito piquinino”. Ergueu as costas do chão e procurou conforto no olhar da João. Silêncio. “Quem é, Scott, de quem é esse olhar?”. “Opa! GranpaJan! Meu vô Johannes!”. Note-se: Scott não sabia da coincidência de nomes, até porque “aquele” João era Maria antes de ser João. Mas estas coincidências fazem-me sempre acreditar na sabedoria dos grupos nos seus olhares calados, nas longas conversas que se fazem nos silêncios, nos e com os corpos…

A João, sem precisar qualquer indicação minha, levantou-se lenta e, como se seguisse um guião ditado pelo olhar de Scott, rodeou-o, sentou-se atrás dele, deixando que o peso do seu novo neto pousasse no seu peito. Afagou-lhe, ligeira, os cabelos. Scott, criança agora, olhava em frente, como se visse algo a dois metros de si. Com uma excitação contida, olhou para trás, procurando o olhar do avô João. Era uma deixa para uma troca de papéis. “Scott – disse -, gostava que trocasse de papéis com a Maria João, ela faz agora de si e você faz de seu avô, pode ser?”. Scott nem hesitou, como se aquilo fosse o seu estilo de vida. Era um homem dos teatros, dos papéis, dos personagens, aquela criatura. No lugar do avô, fechou momentaneamente os olhos, como se entrasse no papel. Ficamos todos em suspenso, notou-se que todos nos inclinámos ligeiramente para a frente, como se esperássemos um ligeiro murmúrio. “Toooooooooor!”, explodiu, quase matando de susto todos, em particular a João, que agora, no papel de Scott criança, estava ao colo do avô. “Gooool, goal, golo! Schnellinger!!!” Scott, aliás, o avô João, olhava agora o seu neto, como se esperasse uma reacção. “Troquem”, disse eu, e de novo Scott foi fazer de si próprio em criança e a Maria João se colocou no papel do avô. “Gooolo!”, gritou ela, e o neto, de imediato, começou a soluçar. “Scott, querido, que se passa?”, dizia a João, aliás, o avô João. Scott chorava, inconsolável. Deixei os momentos passar, até que Scott começou a balbuciar… “… sozinho, tenho medo, não me deixes”. “Não te assustes, foi só um golo, um susto, já passou!”. “Nein, Opa, estou sozinho, não me deixes…”. A João não sabia o que fazer. Sugeri uma nova troca de papéis. Scott, no papel de avô, levou o neto para a cama, deitou-o, afagou-o, acalmou-o. Decidi que era altura de Scott ser ele de novo, criança a ser deitada por seu avô. A João fez o seu papel com um carinho extremo, mas aquela criança não sossegava. Pedi ao “avô” que saísse, e perguntei a Scott, que estava tapado pelo lenço azul como se fosse uma colcha: “Como está esta criança? Dorme, sonha?”. “Acordado, estar acordado. Meu avô não saber ainda, mas meus pais morrer, eu estar sozinho. O golo da Alemanha foi só para tapar estrondo do comboio, foi horrível. A polícia vai aparecer nossa casa, meu avô quase morrer, não quiser-me contar…”.

Os minutos seguintes foram comoventes. Entre trocas de papéis, que não assinalo para não perder o ritmo do diálogo, percebemos todos que aquela relação entre avô e neto marcaria a vida de ambos até ao fim:

S.: Ja, Opa, ja Opa. Eu saber que mama e papa gostar muito de mim, mas quando ver eles? Juras que estão à nossa espera em América? Ter um restaurante e bar? Quando vamos viver eles?
J.: Breve. Mas eu leio-te as cartas deles, enquanto tu não aprender a ler. Olha, esta chegar hoje: “Dear Scott, mama e papa estar muito bem. Restaurante muito cresceu, muitos empregados, papa vai ver muito boxe, todas noites, mama aprendeu cantar e canta no bar restaurante noite. Vida América muito boa, poder vir com avô. Se nós não estivermos cá quando chegarem, é porque fomos viajar, mas vamos escrever muito. Beijos no avô Johannes. Aprender depressa a ler, para escrever nós cartas.”
S.: “Opa, mama e papa não vão estar América quando nós chegar?”.
J.: “Vai estar, sim, vai estar…”.

Escrever, escrever. A escrita e a imaginação, como não, foram as saídas desta criança. Não percebemos grandes detalhes sobre o que aconteceu nesses momentos da sua vida, mas tínhamos visto ali uma criança marcada pela perda, por um medo maior do que podia suportar, e com uma saída que parecia surgir-lhe à frente como quase única: manter, no imaginário, o contacto com aqueles pais subitamente desaparecidos. E o avô, como garante solitário do seu conforto.

“Scott, ainda temos algum tempo, posso lançar-lhe um último desafio?”. “Sim.”. “Então faça o seguinte: apresente-nos, na forma de um quadro, de uma fotografia, de uma cena, aqui no meio, a sua vida, tal como a vê neste momento.” “What?”. “É simples, trata-se de que coloque aqui no centro do nosso círculo, pessoas, coisas, símbolos, o que quiser, como se estivesse a fazer um quadro vivo sobre a sua vida. Vá fazendo, vai ver que é simples”.

Scott colocou-se quase no centro do espaço. Olhando em redor, escolheu a João, a Alexandra e a Madá, e colocou-as atrás de si: a João logo atrás, quase tocando-o, mas sem contacto visual, a Alexandra à sua esquerda, num dos cantos virtuais do espaço que começava a desenhar-se, e a Madá no “canto” direito. Olhando em volta, encontrou alguns livros em cima das mesas, e empilhou 4 deles no sítio onde estava, sentando-se em seguida sobre eles. Por fim, colocou as restantes pessoas à sua frente, mas agrupadas a duas: um par parecia lutar / dançar, outro jogava cartas e bebia, o terceiro simulava uma trapezista e o ajudante que vela pela sua segurança. Percebemos, pelas suas curtas explicações enquanto montava aqueles pares, que cada um contava uma história.

Um resumo, muito resumido mesmo, daquele quadro: Scott no meio, sentado em cima de livros, atrás de si, um trio, que revelou ser o avô (logo atrás), a mãe e o pai (nos cantos), e à sua frente 3 histórias, e mais seriam se mais pessoas houvesse ali…

“Obrigado, Scott. Então isto é como você vê a sua vida, hoje. Olhe, venha para aqui, ver o aspecto da sua obra desde aqui. Eu substituo-o”. E trocamos de lugar. Scott murmurou uns sons, como se observasse algo de muito evidente para ele. “Volte para aqui, Scott. Agora, gostava que, para terminar, nos mostrasse, não como vê a sua vida, mas sim como gostava que ela fosse…”. De imediato, e como se tivesse antecipado a minha proposta, Scott levantou-se, girou 180 graus o seu corpo, e sentou-se de novo. Ficou assim com os “pares contadores de histórias” nas suas costas e com a sua família à sua frente. Permaneceu em silêncio uns segundos. De uma forma espontânea, deu um pequeno passo e abraçou o avô. Aí permaneceu uns segundos, até puxar o avô com ele até seu pai, a quem abraçou igualmente, emocionado e emocionando. Deixou o avô com o pai, tocando-se, e, olhando primeiro o chão e, a pouco e pouco, dirigindo o olhar ao de sua mãe, foi começando um murmúrio e, já num abraço de total entrega, começou num pranto acompanhado de um longo e totalmente incompreensível queixume, em alemão. Assim ficou longos minutos, sempre abraçado, sempre em murmúrios. A Madalena, habituada às lides de mãe, mantinha o abraço e ia também murmurando na língua que falam mães e bebés.

Deixei o silêncio tomar conta da sala, antes de sugerir que nos sentássemos. Abri o momento dos comentários, mas ninguém tinha nada a dizer, nem Scott. Parecia exausto. Não me recordo de grandes detalhes, sei que também não disse quase nada, apenas agradeci a todos e ao Scott. Alguém bateu à porta, era um empregado que nos vinha expulsar, a hora de fecho da faculdade já tinha passado. Descemos, saímos da escola. Houve uma troca de olhares final, sorrisos cúmplices, agora que aquele novo cenário, de automóveis buzinando, estudantes e boémios cruzando-se, gente apressando-se em direcção à estação próxima, começava a trazer-nos da nossa longa viagem. Scott, lentamente, foi deixando a sua atenção dispersar-se por todos estes estímulos. Um novo semblante surgiu no seu rosto, quase antevi um esboço de cor rosácea, como se tivesse ficado ligeiramente envergonhado, olhando as escadas íngremes que subiria em seguida. Parecia querer dizer que tinha de ir, deixar-nos, mas o seu quase imperceptível rubor deixava adivinhar um encontro aguardado. Seria uma amiga, uma amante? Quando Scott começou a subir, de costas para nós, a Cláudia disse: “Direitinho ao Tejo Bar…”. A mim, a vontade levou-me de novo para a margem do rio.

(A.G.)

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