domingo, 5 de julho de 2009

Quem é Scott Johnsonn?

Quem é Scott Johnsonn?

Numa noite de Inverno, com muita chuva, os clientes do Tejo bar foram surpreendidos pela chegada de um homem muito estranho portando ao ombro um embrulho mais estranho ainda. Apresentou-se como sendo “A escritor Scott Johnsonn, com dos enes!” de quem ninguém ali tinha ouvido falar, nem com um ene só. Parecia estar completamente embriagado, mas prendia a atenção dos ouvintes. Quanto mais falava da sua vida mais se prestava atenção para se perder o mínimo possível da narrativa trôpega, em péssimo português, que terminou numa queda nos degraus da porta.
O 112 foi chamado, o homem foi para o São José e toda a sua obra, a bem dizer, a sua vida, foi deixada espalhada pelas mesas de um bar de Alfama.
Os clientes que sabiam inglês iam lendo e resumindo para os demais os manuscritos que revelavam interessantes histórias prontinhas para serem editadas, incluindo o registo de direitos autorais. Mas nenhuma delas agradou mais aos presentes do que a história de vida de quem as escreveu. Por isso, numa brincadeira de quem espera a chuva passar, achou-se que seria giro se ela fosse contada por todos que estavam ali, cada um à sua maneira, nem que fosse só para mostrar aos clientes que não tiveram a mesma sorte. Estavam todos extasiados. Tanto que quando se reparou que a chuva passara, o sol já ia alto na margem sul do Tejo.


O Escritor

O escritor. Já que com este nome há outros, ainda que com dois enes.
Escritor. Pois desde que se entende por gente que escreve. Suas mais antigas lembranças estão também escritas. A mais antiga:
- Vovô, porquê a vovó nunca veio me ver? Quando era viva, claro!…
- Ela veio sim! Quando nasceste. – o vovô ficou muito tempo calado e o silêncio também fala – Veio ver se o seu cabelo era bom!

Com cinco anos ele registou mesmo sem ainda saber juntar as letrinhas. Pediu ao avô para grafar no caderno de cabedal:

Meine Oma mochte meine
dunkele Haut sehr,
aber noch mehr liebte
sie mein schönes Haar

(Vovó viu e gostou
da minha cor
mas ela gostou
mais do meu cabelo)

O avô escreveu e, por achar que na língua da avó estaria melhor, acrescentou em português:

Vovó me viu e gostou
Da minha cor assim assim
Gostou mais do meu cabelo
Porque não ser um pinchaim

Garatujar ele já sabia. Assinou:
Johann Schmidt



O Caderno de Cabedal

Conta do caderno que o pai comprara para fazer os apontamentos da economia doméstica cujas despesas aumentariam com a sua ida para a escola primária. Ele enamorou-se da capa macia e brancura das páginas. Mas era do pai que não chegou a apontar nem os gastos que teve com o carro para viajar até a casa dos sogros que andavam às voltas com a velhice. Não apontou nada dessa despesa extra que fora a última em vida. As da morte foram cobertas pelo Estado devido à falha humana numa passagem de nível quando o casal foi colhido por um comboio aos 90 minutos da semifinal da Copa de 70 ao mesmo tempo que a Alemanha empatava com a Itália, forçando um prolongamento. O caderno acompanhou-o por toda a vida. Ia substituindo as folhas usadas mantendo sempre a primeira que fora ditada ao avô.

Clarinete nunca a solo

O avô. Johannes quase como o neto. Adolescente na década de 20. Sempre à procura de um sítio propício para tirar da caixa o clarinete e acompanhar os músicos mais velhos, que muitas vezes permitiam e até gostavam dos suportes melódicos que o jovem proporcionava. Certa vez fez um duo com Bertolt Brecht, com Kurt Weill a fazer o baixo contínuo. Mas os anos 30 chegaram acabando com a adolescência de Johannes e o seu sossego musical. A polícia política tinha fotografias suas junto com personas non gratas ao regime. Não adiantou dizer que aquelas fotos em que ele aparecia tocando com a companhia do actor Karl Valentin foi só porque como o senhor Brecht estava a acompanhar o elenco nesse dia e eles já haviam tocado juntos, aproveitaram a oportunidade única para ele, que não pertencia a nenhum grupo. Entretanto, Brecht já estava exilado. Kurt Weill, com o nome que tem seria facilmente aproveitado quem sabe até na Broadway… e ele, que ninguém sabia o nome ou quando soubesse era apenas do Johannes do clarinete, que os músicos gostavam de ter como escada, quanto bastava para denunciá-lo. Se fosse de outra maneira estaria ele agora a caminho do jazz e talvez até de Hollywood… Mas ele teve que se contentar em seguir de terceira classe para a América do Sul, onde tinha um tio comerciante no Rio de Janeiro. E o jazz e a outra América ficaram no sonho do último sono a bordo em que ele vê a estátua da Liberdade mas, ao esfregar os olhos, se depara com um bloco enorme de pedra escura e, mais ao longe, no alto de um penhasco, uma figura humana de braços abertos.
A clarineta, como passou a chamar o instrumento, logo acomodou-se ao choro, maxixe, polca e até fox e jazz dos vários músicos que se agrupavam ocasionalmente. Porém precisava de algo mais consistente pois a clarineta não combinava com os tecidos da loja do tio. “A vida me é difícil! Para estar entre nós há que trabalhar!” O tio vivia a reclamar. “Nem judeu eu sou… Não sei porque me fui enfiar nesse negócio…” “Rua!”
Rua, bares, colegas… Apresentou-se para tocar numa revista que o emergente produtor Walter Pinto estava a montar, grandiosa e que absorveria muita gente e ele precisava ter um tecto para si e para a sua clarineta. No dia da selecção, conheceu uma pretendente a corista. Mulata, mas muito disfarçada com pó-de-arroz e cabelo alisado. Ela não foi selecionada, mas já tinha um trabalho numa companhia menor onde lhe bastava uma peruca e para onde levou o já seu alemão, pois foi amor à primeira audição. Oito meses depois de vida em comum numa pensão no Catete resolveram casar. As dores começaram ainda no altar e a lua de mel foi passada em separado. Ela no leito, ele no pátio da maternidade Carmela Dutra, onde os colegas brindaram a chegada do prematuro João e de onde foram todos para a delegacia de polícia. Depois das explicações termiraram com uma alvorada a pedido do delegado para uma rapariga que não resistiu a tão “cara” serenata e lhe cedeu a mão em casamento que teve o bom alemão como padrinho. E foi essa amizade com o delegado compadre que lhe valeu escapar das garras dos Camisas Verde que o descobriram conotado com o comunismo. “Aqui ninguém entra!” O delegado foi duro. “Doutor Getúlio não vai gostar disto!” Ameaçou um dos militantes. “É a lei. Não posso fazer nada. Ele já está sob a protecção do Estado na condição de prisioneiro.” Um outro exibe a Sigma como forma de intimidação. O compadre foi mais firme. “O homem é meu, ninguém toca. Comigo é assim… errou tá em cana!” E o que foi que ele fez? “Roubou uma galinha!” Os tempos duros estavam propensos a fazer a desculpa do delegado vir a se tornar realidade. Foi para o Sul onde havia colónias de alemães, mas não houve boa integração devido à cor da mulher e aos caracóis do filho. Tornou ao Rio quando o Brasil entrou na guerra e as coisas ficaram feias para o lado dos emigrantes oriundos do Eixo. De outra vez não foi o amigo delegado, mas um grupo de malandros capoeiras que desfizeram o cerco ao bar onde os músicos da revista que ora ensaiavam estavam calmamente a limar algumas aparas. Os exaltados cidadãos cheios de ufanismo aguardavam que o ror aumentasse para terem possibilidades contra os capoeiristas. Antes que alguém se magoasse com maior gravidade, o director musical matou a pendenga com um discurso. “Que alemão…!? Quem é que tá em tudo que é roda de choro, na Lapa ou na Vila? Quem é que chegou das oropa num dia e no outro já chorava com a gente a saudade do nosso Noel?” E arrematou: “Alemão, o caralho!”
Acabou-se a guerra. Aquela. E como mais valeu perder, a Alemanha crescia e precisava dos braços e da cabeça de um que demonstrava muitas habilidades técnicas e poucas aptidões musicais. Mandou o filho adolescente para a terra. João estudou tornearia mecânica e fez a sua vida na capital já dividida. Casou e deu um neto a Johannes, o nosso Johann.
Johannes enviuvou e nada mais o prendia ao país de acolhimento. Se tivesse feito um bom pé de meia, não pensaria duas vezes e partiria em busca do velho sonho. Veio o período mais apertado da ditadura militar e ele se sentia incomodado por já ter tocado em alguns grupos teatrais de vanguarda. Incomodado e escaldado foi viver com o filho, a nora e o neto de três aninhos.
Dois anos passou sem fazer muito uso da clarinete, ‘die’ clarinete, ainda mais feminina, largada a um canto. Parece que a Alemanha só vivia para trabalhar e crescer. A cabeça ainda com a ideia de “se pudesse ir para a América!” Lembrava-se sempre de uma vez que foi com a falecida ao cinema e a película tinha música de Kurt Weill. Padecia naquela Berlim desconhecida como se tivesse saudades de uma vida que ainda não vivera. “O jazz…” Um suspiro que fazia esquecer o samba e as marchinhas carnavalescas. Quando recebeu a indemnização do Estado e a semi-tutela da criança, tratou de, com um suborno aqui outro ali, transferir o dinheiro para a Suíça. Para transferir a criança foi mais difícil. Não quis pedir a autorizaçao de viagem. Para não levantar a lebre. Não acreditava que tivesse a completa responsabilidade sobre a criança e não quis pagar para ver. Artista, sem uma colocação, de idade avançada e sem uma boa reforma… Fez uma visita a um trompetista cuja prima havia passado de lado pelo ducto de ar de sua casa que era paredes meias com a divisa. O menino seguiu na frente e passou. Logo foi apanhado por um polícia a quem pediu socorro para tirarem o avô que havia ficado entalado. Para a KGB explicou que bem antes da divisão ele já tinha uma inclinação para determinado lado. Apesar de que não era neste lado que poderia estar por ora, pois precisava ir ter com a irmã que tinha família em Nova Yorque e com melhores possibilidades para a criação da criança. Era uma conversa maluca, difícil de sustentar até que alguém encontrou umas fotos que exibiam ele junto de pessoas tão gratas ao regime. Não foi preciso nenhum suborno. Bastou um sorriso aqui, outro ali e alguns autógrafos. E já estava passado o salvo-conduto para a Polónia, de lá para a Áustria e de lá para tão perto do jazz, que já estava em toda a parte.
Moradia. O que seria mais em conta, comprar, alugar ou… e é o que foi, fazer um negócio de ocasião com o primeiro conhecido que fez na nova vida. Arrendar por um determinado tempo com o valor de aluguer mensal da altura. “Por quanto tempo?” “Vejamos, o puto tem cinco anos… digamos, vinte anos.” “E você acha que vai viver isso tudo?” “Só tenho sessenta. A minha preocupação é só com a criança.” “Mas eu estou a fazer negócio com você. Dez anos?” “E se eu morro?! Um rapaz de 15 anos…” “Está bem! Quinze. E não se fala mais nisso!” “Quinze!” Que beleza de vida. Nada de preocupações, contas, impostos… gastos, só aqueles do dia a dia que não há como escapar. Mesmo assim, muito do que se manda pela goela abaixo era patrocinado por algum novo colega musical. Mas orientava bem as contas da criança que foi crescendo sem faltar nada, incluindo ótimas escolas e preceptores. E viva o jazz! Uma noite entrou num bar. Era uma segunda-feira. Quando um rapaz muito tímido começou a tocar, ele, por entre as mesas retirou da caixa a sua inseparável companheira. Foi agarrado pelo braço e convidado a se retirar. O senhor Woody Allen havia deixado de ir receber um Óscar só porque calhava no dia em que ele tocava ali e não seria um qualquer desconhecido a atrapalhar. A estrela da noite ainda tentou se aperceber da confusão que se deu à entrada. Não viu nem ouviu. Mas o retirado gritou alto: “Eu toquei foi com Kurt Weill e Bertold Brecht!”
Morreu. E o acordo com o amigo mais antigo pareceu haver sido selado sob os auspícios do sobrenatural. Bruxedo puro. Pois não é que morreu no mesmo dia que venceu o compromisso! E para aumentar mais ainda o mistério, também o senhorio morreu nesse dia. Porque não fizeram um contrato mais longo!?… Isso complicou pela primeira vez a vida do jovem de vinte anos posto na rua sumariamente pelos herdeiros que não poupavam a memória do parente com os seus impropérios. “E não adianta recorrer à corte porque o acordo com o senhor seu avô era só proforma.” E ele não saberia fazer algo tão complicado quando, mesmo as coisas mais simples eram resolvidas pelo avô.


Pai e Mãe

Pouco se sabe sobre os seus pais. Dentre os seus haveres abandonados no bar, foram encontradas duas fotografias, uma do casamento e outra de família, com ele, ainda bebé, ao colo da mãe. Portanto, este é um capítulo aberto a muitas fantasias. Quem quiser que se habilite.

Maria

Filha do dono de um restaurante português. Ainda não casara apesar de ser a mais velha. Pilar principal do negócio da família, vivia encalhada na cozinha e nos despachos. Os dois irmãos homens casaram com o mundo e a mais nova arranjara marido e lhe fizera tia de verdade. Mas que coisa! A inveja partia da casada pela liberdade da mais velha que era pequena mas que lhe permitia ir visitar uma amiga e até procurar um bom partido. (Esse capítulo deve ser escrito por quem conheça bem o universo interior feminino)

John

Sem pai nem mãe, sem avô e, pior, sem expediente algum e recurso nenhum. Entrou na primeira agência de emprego. Atrapalhou-se com a fila mas lá se pôs no seu lugar. Chegou a sua vez. “Profissão?” “…” “O que sabe fazer?” “Sou escritor.” “Último emprego?” “…” A atendente pega o formulário de primeiro emprego. “O que escreve?” “De tudo. Mas, principalmente, ficção.” “Já recebeu algum emolumento por algum de seus escritos?” “…” A tez morena de um perpétuo bronzeado emoldurado por negros cabelos lisos e ligeiramente desgrenhados atraía as atenções das raparigas, não só da atendente como também da amiga que estava ali para uma breve visita. Mas, mais pela situação que pela beleza do desempregado, a visitante dá uma ideia: “Dê a ele a morada de algum editor.” Em agradecimento ele não sabia se a convidava para um gelado ou um passeio na biblioteca. Afinal bastou acompanharem-se até à saída da repartição com algumas palavras triviais como E você, o que faz? “Também sou escritora.” “…” A rapariga apanha uma caneta e um papel e completa “Escrevo números.” E entrega o papel com o telefone. “Maria. Espanhol?” “Português. Mas pode me chamar de Mary.” “Eu falar um pouco de português. Tenho uma avó brasileira. Encantado. Sou Johann, mas pode me chamar de John.”
Johann que todo conhecimento que tinha do mundo e da vida lhe entrava através dos livros não sabia lidar com nada. E por não saber nada de nada, já no primeiro encontro, aceitou uma ajuda financeira da amiga Maria, deixou-se ir e a rapariga engravidou-se. Muito naturalmente a questão foi levada ao pai que rapidamente levou a filha pelo braço ao altar.
Maria continuou a escrever os números no livro de deve e haver e a ser o suporte da cozinha sem contar com a ajuda do marido que bem que tentava aprender na práctica o que ia muito bem na teoria dos livros de hotelaria, gestão e receitas. Aprendeu a bisca. O velho sogro adorava o jogo da bisca. Quando os filhos eram pequenos ele os obrigava a jogar e até jogavam a bisca de réles que ocupa quatro jogadores em parceria. Faziam o revezamento conforme o sono ia atacando. O sono e o cansaço da lida com estudos e com a empresa familiar. Mas eles cresceram. Um gosta do baralho, mas do Black Jack e do Bacarah. Para não delapidar as finanças foi mandado à vida. O outro foi à vida por conta própria. A mais nova já se sabe, casou, tem dois filhos e o marido engenheiro e vive a roer-se de inveja da irmã que tem toda a confiança do pai e, agora, um homem bem apessoado. Bem apessoado?! O gajo é bonito até demais. Mas essa beleza nunca o atrapalhou. Não porque ele estivesse livre dos assédios que sucediam durante as suas poucas actividades sociais que se resumiam à escola, um cinema, teatro e muita biblioteca. Nunca o atrapalhou porque ele não tinha noção disso e as investidas eram todas frustradas. Continuou a escrever, a tentar ajudar como podia e a jogar à bisca. O sogro gostava pois quase sempre ia dormir acalentado por muitas bandeiras que fazia questão de mostrar aos funcionários quando perguntavam como fora a noite. E, às vezes, o patrão até mentia. “Na verdade eu gostava mais quando era a Maria a jogar. Dava mais luta!” Mentira. Ele gostava do jogo fácil e não se pejava de fazer uma batotinha aproveitando-se da sonolência ou, como no caso actual, da imperícia do adversário. E quando por muito acaso perdia? Os funcionários nem perguntavam. Sabiam-no pela cara. Das más caras ele parecia livre. O genro só lhe dava alegrias. E ainda por cima tinha boas histórias. Não que ele as contasse pois não tinha o jeito para a contação. Ele apenas dizia do que se tratava com rápidas pinceladas e o sogro, de bom ouvinte, dava-lhes enredo e até sonhava com elas. Depois recontava-as ao autor que se aproveitava para reescrevê-las numa perfeita simbiose entre autor e ouvinte. E aí, despertou-lhe a curiosidade de se isso aconteceria com os leitores que por ventura viesse a ter. Isso ele nunca soube, pois nunca se expôs. As redacções escolares ele as fazia tecnicamente o quanto bastasse. O romance que mandou para o editor sugerido por Maria nunca soube se foi lido. As histórias onirizadas pelo sogro davam azo a outras mais fantásticas ainda. Assim surgiu um guião cinematográfico futurista. Os Dedos, que assim se resume: A indústria descobre que já fica mais barato criar a partir da engenharia genética que da cibernética e começa a produzir uns humanóides para tarefas do lar. Como algumas tarefas eram dificultadas pela forma da mão. Criou-se um modelo, mais caro, que tinha o polegar opositor. A princípio só os mais ricos exibiam os Dedos que tinham em tarefas específicas. Por fim tornaram-se acessíveis à maioria e eram também muito utilizados na indústria e nas forças armadas como bucha-de-canhão. Já dá para imaginar o que acontece quando o implemento do polegar começou a desenvolver a mente dos Dedos, pois trata-se de uma história bem nossa conhecida. O velho gostava muito também dos casos do avô Johannes que teve uma vida totalmente diferente da sua e que talvez fosse secretamente a que ele gostaria de ter vivido. Outra história que o velho muito contribuiu era a que foi chamada de Equus’ Limbo. Bonito nome, não é? Já sabemos como é o nosso artista. Sabe um péssimo português, fala um alemão coloquial, mas usa um inglês que nem Shakespeare se atreveria. Gasta o latim e o grego à vontade mesmo que seja para dizer um simples Hi! Não admira que lhe fosse quase impossível uma boa integração social. Mas voltando ao paraíso dos cavalos. Nesse lugar para onde vão os cavalos bem ou mal comportados, lá estão em conversa o Incitatus, o Bucéfalo, o Roncinante e tantos outros cavalos famosos, confidentes dos momentos mais solitários de outros não menos famosos humanos. Cada um a falar daquele que se dizia seu dono. A filosofia corria à solta, mas as reclamações e as fofocas também eram muitas. E não é que ele esqueceu, mas o sogro, não sabemos se em sonho ou se fruto da imaginação, acrescentou os burrinhos que testemunharam Jesus. O que o aqueceu na manjedoura, o que o levou na fuga para o Egipto e o que o transportou na entrada triunfal em Jerusalém. Tinha também casos mais sérios como uma crónica para Jesse Owen, que fez o Hitler sair do estádio para não ter que medalhar um negro. A da avó que teve também problemas por causa da morenez. A história de amizade entre Max Schmeling, um lutador alemão ariano e um americano negro, de quem o avô gostava muito e até dizia que ele não era o único pretinho de quem gostava. Havia outro para além do neto e de toda a cambada do jazz, o Joe Louis, que foi um dos primeiros a dar um sopapo no Nazismo. Nesse conto ele imagina um terceiro combate entre os dois, no qual quem presenciou a melhor de três morreu sem poder contar o resultado. Essa é a história que achamos que seria melhor para publicar. Tendo em vista a actualidade, pois fala do início de um ciclo que se fecha com a eleição de Obama para presidente, já que pela primeira vez um negro representou a nação americana. Também por ser uma história de poucas laudas e nós gostaríamos mesmo era de contar a história de vida desse homem invulgar que se assume como escritor e só conhece a vida através dos livros. Um verdadeiro rato de biblioteca que, como ele mesmo disse para todos que estavam no Tejo bar a quando do nosso encontro, “Eu ser um bibliot! Uma perfecta idiota! Idiota das livros!” Outra. Uma crónica de arrepiar os cabelos! Feita para Karl-Heinz Schnellinge, o jogador alemão que marcou o golo que fez renascer a esperança da conquista da taça Jules Rimet e por causa disso, aconteceu o acidente que vitimou os seus pais. Mas essa, nem pensar, de tão dramática.
Um facto veio alterar a vida do nosso herói. Faltou quem ficasse a frente dos negócios que tinham no Norte de Portugal. Maria prontificou-se a ir com a família para assumir a loja de ferragens. Havia escola para a miúda e podia ser que assim o marido começasse a ser mais activo e muito precisaria de ajuda por ser bem diferente do que estava acostumada. A irmã aceitou com bom grado assumir a sua vaga. O velho não disse nada, mas achava bom se a mais nova pudesse ir. O marido engenheiro não podia afastar-se do emprego. Lá se foi o companheiro da bisca.
Como se imagina, as relações familiares se complicaram muito. “O pai só vive com a cabeça na lua!” Dizia a pequena, quando não reproduzia frases piores ditas pela mãe. Ele procurava ajeitar-se com alguma coisa. Foi ao Porto para comprar parafusos. Na esplanada de um café chamou-lhe a atenção uma rapariga que escrevia num caderno e parecia que o fazia compulsivamente, como ele. De repente, uma lufada de vento atirou com as folhas para longe. Prontificou-se a ajudar a mulher que não sabia se atendia a criança que chorava no carrinho de bebé ou se apanhava os escritos. “Muito agradecida. O senhor foi rápido. Por pouco o caderno caía na sarjeta.” “A senhora é escritora?” “Sou. Estou a escrever um romance infantil. Nunca publiquei nada. Mas vou tentar. Depois que terminar de escrever é claro.” Ele quis dizer que também era um escritor, mas ficou de boca aberta com a declaração espontânea da rapariga. Pela primeira vez ele viu alguém assumir-se como escritor sem ter nada editado. Como ele. Encabulou-se o coitado com a rapariga que, depois veio a saber que era professora de inglês na cidade do Porto.
Não demorou muito tempo para que ele tornasse a procurá-la. A intenção era procurar saber se ela tinha contactos com editoras inglesas. A senhora que atendia as mesas do café lembrou-se da inglesinha. “Coitadinha!” E deu o serviço completo. “Pois o marido não pôs a pobre na rua! Lá vai que a pobrezinha conseguiu recuperar a criança e fugir para longe daquele ingrato.” Contou que ela ficava horas e horas a escrever ali, distraída. “Agora, ela deve estar a escrever em algum café lá da terra dela e faz ela muito bem!”
Foi a gota d’água na relação. Cabeça ao vento e mulher no pensamento!? Foi atirado ao ostracismo doméstico e a sua função passou a ser apenas a de acompanhar a miúda nas caminhadas de ida e volta da escola. Quando a rapariga se tornou adolescente, viu-se um trapo atirado às baratas. Nada disso o afecta, ainda mais que agora, depois de aprender com a filha os rudimentos da Internet, passou a frequentar bibliotecas virtuais de todo o mundo. Maria expôs a situação ao pai, que prontificou-se a interceder. Pediu que ela chamasse um dos parentes da terra para ajudá-la e que ela mandasse o genro para ter uma conversa. O genro foi. Que jeito?! “Eu sou católico. Para mim o casamento é para sempre. Você sabe. Sou contra o divórcio. Mas… e na vida há sempre um mas… Há circunstâncias… certas situações… Não que eu pense que se deva separar! Longe disso! Mas penso que possa se afastar por um tempo. Até a poeira baixar. A distância às vezes faz… a saudade! Vamos fazer assim. Vocês dão um tempo para… enquanto isso, jogamos uma bisca!” Voltaram à bisca e às histórias, agora, com algumas portuguesas no repertório. Uma em particular caiu no goto do velho, a da conquista do Porto pelos mouros, ou melhor, por um mouro. A cidade continuou sendo A Invicta, mas poucas foram as famílias em que pelo menos uma rapariga não cedesse aos encantos de um comerciante de Lisboa que era um verdadeiro Casanova de ébano, um Dom Juan das Arábias. E ele jogou à bisca até o velho sogro morrer e o engenheiro assumir junto com a mulher o destino do restaurante. Olha este!… Para assumir os negócios em Portugal, não podia largar o trabalho. E ele por mais uma vez vê-se com uma mão atrás, outra na frente. Para completar a desgraça, Maria, livre da influência paterna, pediu o divórcio. Por sorte, encontrou com o Ruivo, um português, morador em Newark, que de quando em vez frequentava o restaurante. Como os dois têm mais ou menos a mesma doença, os dois são compulsivos. A diferença é que o conhecimento do outro é praticamente todo empírico e apesar de uma pouca leitura, muita escrita. Talvez por essa afinidade, abriu-se com o companheiro. O Ruivo diz que é para ele procurar o Tejo bar, em Alfama porque lá ele encontraria o Mané que é um amigo que já tem muitos livros editados e conhece o mettier. “Inclusive já editou livros meus. Clandestinamente.” “Mas eu não escrevo em português!” “Não há crise, man. Nesse bar que eu estou falando vai gente de toda parte. Quem sabe?… Bolas, então pedimos ao Mané para editar como ele fez com os meus e vendemos aqui. Eu pago!” E começou por pagar a sua passagem de volta a Portugal. Ele nem foi ao Norte. Foi direito a Lisboa. Iria nascer de novo. Como artista, nem que para isso precisasse morrer. “O papá não sabe nem escolher o nome…” comentou certa feita, a filha, olhando no computador. “… olha só quantos Scott Johnson existem!” Para não dar o braço a torcer, ele regista com esse nome mesmo, mas acrescenta um ene. Que importa, eu gosto do nome. Há o pensador, há o corredor, há o pintor e quantos ores. Eu sou o escritor. Certo. Toda gente é um or, um eiro, eira, etla, ista e tantas terminações que indicam a função e o é de duas maneiras a saber: Profissional, que vive da função ou amador, que não vive dela mas que se subentende ter uma outra para sustento e essa outra pode ser mesmo gerir uma fortuna ou simplesmente gastá-la. Mas o que dizer dele que não se encaixa em nenhuma das duas pois como bem disse a mulher “Nunca meteu um prego numa barra de sabão!”

Escrevendo o escritor

“Vocês deixem de elucubrações! Sou escritor porque escrevo!” Ou melhor, comecemos as elucubrações e vamos escrever o escritor. Foi este pensamento que tomou conta das tantas pessoas que estavam no Tejo bar quando ele chegou como um bêbado e num expurgo contou a sua vida encantando a todos. Na altura estávamos lá… Relação dos presentes:

Mané do Café, Paulo Muiños, Marco Pombinho, Paola D’Agostino, Isabel Figueiredo, António Gonzalez, Marie Alix de Saint Roman, João Pinho Serra, Natasha, Stephen Schneider, Cristiano Holtz, Roberta Messi, Jan van Basten, Ivo Dias de Sousa, Alix Serre, Cláudia Carvalho, Ana Cabrita, Ondjaki, João Paulo Cuenca, Ana Marquez, Alex Alverga, Janeca, Pedro Godinho, Paulo Azevedo, Bruno Martins, Altecídio Gomes, Ilorito, Luis Bastos, Roberto Ciucci, Diogo Franco, Gilda di Giuliu, Diana Antunes, Jody da Costa, Kanthavel Pasupathipillai, Valentina Vipera, João Pimentel, Daniel Vieira, a rapariga que leu algumas histórias fazendo a tradução, outras ainda anónimas, Pedro Borges e o Sérgio que não nos deixa mentir.

Lá estavam até alguns escritores “de verdade” como o Ondjaki e o Cuenca que, apesar de terem tomado algumas notas esparsas, dificilmente poderão participar da brincadeira devido a tantos compromissos exigidos aos escritores, para além de escrever. Calado a um canto a observar atentamente tudo que se passava estava alguém que nos pareceu ser o Mia Couto, mas ficamos sem ter a certeza e nem nos apercebemos de quando ele saiu.
Dos muitos que embarcaram nessa aventura, nem todos são escritores, mas querem deixar a sua impressão sobre o estranho escritor. O Cristiano diz que vai retratá-lo em música. O Daniel, em tela, numa pintura. O Tó-Zé vai “fazer” um psicodrama com ele. Cada um quer contar pelo menos alguma das passagens da vida ímpar desse cavaleiro delirante que numa noite despejou-nos toda a sua existência num frenesin que culminou com um discurso do qual não percebemos quase nada das palavras que iam sendo acompanhadas de movimentos da mão como se estivesse a escrevê-las numa folha imaginária. Ao fazer o ponto final, caiu desacordado. Bateu a cabeça. Chamamos o 112, que o levou para o Hospital São José. No outro dia fomos procurar saber dele. Perguntamos por alguém que tivesse dado entrada em coma alcoólica. Lá descobriram um cidadão americano com o nome Johann Schmidt que precisou de uma bandagem na testa, mas que não estava alcoolizado. Que foi atendido e despachado na mesma hora e ido sabe Deus para onde.


(Esses apontamentos foram tomados pelo Mané do Café, Paulo Muiños, Marco Pombinho, Isabel Figueiredo e Ricardo Mendanha que fazem a organização)



Cronologia

1910 – Nasce o avô.
1938 – O avô foge para o Brasil.
1940 – Nasce o pai.
1955 – O pai vai para a Alemanha.
1965 – Nasce.
1968 – O avô vai para a Alemanha.
1970 – Morrem os pais. Vai com o avô para Nova Yorque.
1985 – O avô morre. Casa-se com Maria.
1992 – Vai com a família para Portugal.
1993 – Conhece a escritora inglesa.
2000 – Separa-se da família e volta a Nova Yorque.
2008 – Morre o sogro. Maria pede o divórcio.
2009 – Com a ajuda do amigo Francisco, volta a Portugal e procura o Tejo bar.

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