segunda-feira, 6 de julho de 2009

Escrito no Ar



Naquela noite fria e chuvosa em Alfama, o Tejo bar, como de costume, estava repleto de pessoas com diferentes feições e sotaques. Uma certa aura de mistério misturada com uma aparente disposição para o encontro fazia com que pequenos grupos de italianos, espanhóis, alemães, brasileiros, portugueses, cabo-verdianos e franceses (pelo menos foram estas pronúncias que pude reconhecer), partilhassem olhares, gestos, declamações, algumas palavras na língua alheia, acordes no violão e algumas canções. Este clima foi modificado bruscamente com a entrada daquele homem que se apresentou como Scott Johnsonn. Mesmo se portando de uma maneira visivelmente sob excessiva influência do álcool, somado ao péssimo português falado, Scott Johnsonn prendeu a atenção de todos com suas narrativas tão exóticas e cambaleantes quanto sua figura. O que sugeriam ser narrativas autobiográficas.
Contudo, aquele tom vacilante do Scott Johnsonn, de súbito, se transformou em um eloqüente e insurgente discurso. Igualmente súbita foi sua queda após pronunciar aquelas palavras à porta do Tejo bar. Por sorte, distraidamente havia deixado minha câmera ligada desde a bela declamação de Clarice Lispector feita por Mariana antes da chegada do Scott Johnsonn, permitindo a captura em áudio. Não sabíamos naquela altura que aquele homem que teve uma vida praticamente livresca iria deixar a sua última obra escrita no ar:
“Somos todos judeus alemães!” Não se engane foi apenas o Campo de Concentração que se modernizou. Antes e, não obstante arduamente, vivêssemos em uma época de servidão voluntária como bem diagnosticou La Boétie. A servidão ganha agora ares de um sinistro genocídio auto-imposto. Este escrito fará mais sentido se lido num domingo de noite. Caso isso não coincida, imagine-se envolto pela presença de uma segunda-feira rotineira e talvez já seja suficiente. Bem- vindo à Era dos micro-genocídios, aqui o seu corpo cruelmente morto não será necessariamente jogado em uma vala comum, afinal, na melhor das hipóteses, nós mortos-vivos-padrão nos encaminharemos, mais cedo do que gostaríamos, a alguma forma de transporte público lotado para depois termos a honra de sermos explorados. Um verdadeiro privilégio para um contingente cada vez menor. Isto não é tão somente a expressão indignada de um vagabundo insatisfeito com a sua própria vida como já me questionaram, é mais um ruído de alguém que pensa que a nossa pretensa harmonia, mais do que enlouquece, mata. O cigarro me advertiu: o Estado mata! Aliás, para lembrar uma “equação” foucaultiana de um de seus cursos aritmética da existência aplicada à guerra, o Soberano que fazia morrer e deixava viver, entretanto, o Estado contemporâneo faz viver e deixa morrer. Então não me acusem de cinismo, olhe para nossa organização e verá bem mais... Ou então, antes de ir trabalhar repare bem ao escovar os dentes na sua cara de zumbi. Mas tente se alegrar, os tempos são outros, você morreu, mas deixaram-te viver!
Mas antes de sair repare bem na sua casa, em como a solidão transformou a nossa relação com os eletrodomésticos, esses arautos da vida “moderna”. Abrimos a geladeira para meditar, ligamos a televisão para cuidar de nossos filhos, observamos pelo computador o que se passa lá fora... Se estes espantosos atos lhe dizem alguma coisa, então por que não rebatizar esses nossos companheiros?! Geladeira-oráculo, Televisão-babá, Computador-janela. É favor não me classificar como romântico antes de terminarem de ler. Ao mesmo tempo diria que isso é um julgamento quase inevitável para quem está praticamente etiquetando os seus costumes com um tom de desaprovação, algo que pode realmente ser lido como um saudosismo de uma comunidade perdida. Contudo, prefiro me inspirar no Bruno Latour que propôs de uma maneira desconcertante: e se jamais fomos modernos? Então, respondo perguntando: isto faz de nós pós-modernos-medievais?! Logo, comunidade nunca existiu, saudade tampouco! Então foi assim e Hakim Bey em parte me daria razão: mentiram sobre bem e mal, sobre o nosso amor carnal, incutiram massivas doses de medo, umas porções generosas de culpa e boas pitadas ressentimento... Pronto! Está dada a receita do pão-nosso-de-cada-dia. Só não se esqueçam de rezar antes da refeição e incluir nos agradecimentos o mestre-cuca Nietzsche, afinal ele que traduziu para o alemão o nosso cardápio favorito.

(Alex Reinecke de Alverga)

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