segunda-feira, 6 de julho de 2009

O Solo da Clarineta




O estômago do Johannes estava a incomodá-lo há horas. Por causa dele, Johannes não tinha comido nada no jantar. O neto tinha achado estranho – o avô tem sempre apetite.
Apesar de se sentir mal, Johannes começou a aperaltar-se como era seu costume sexta-feira à noite. Costumava ir a um clube de jazz próximo onde morava. Por vezes, sacava do seu clarinete para acompanhar os músicos. Um ou outro reagiam mal inicialmente mas depois acalmavam. Johannes tocava bem e não lhes roubava a ribalta. Antes pelo contrário, o suporte do clarinete de Johannes ainda os fazia brilhar mais.
Quando vestiu o casaco, a sua dor de estômago piorou. Que estranho. A última coisa que entrou no meu estômago foi o leite. Já passaram várias horas.
Decidiu não sair. Despiu-se e foi para a cama.

O neto ficou preocupado por Johannes não sair. Adora sair com o clarinete. É uma pena só tocar acompanhado. Foi falar com Johannes. Este disse-lhe que não se preocupasse. Sentia o estômago a doer. Já tinha tomado um remédio para as dores de estômago.
Decidiu deitar-se como o Johannes. Tinha um encontro combinado logo de manhã. Queria estar bem desperto.

Johannes puxou do clarinete na cama. Começou a tocar. O músico que estava a ouvir era espectacular. Nunca tinha ouvido nada assim.
O neto no seu quarto reparou que Johannes estava a tocar o seu clarinete. Nunca tinha ouvido o seu avô a tocar sozinho. Nunca, mas mesmo nunca.
Abriu a porta do seu quarto para ouvir melhor o clarinete de Johannes. Do seu ponto de vista, a forma como Johannes tocava era estranha. Nunca tinha ouvido a melodia. Algo digno de um Miles Davis mas diferente de tudo o que já tinha ouvido.
Porém, o mais estranho era Johannes tocar como se tivesse a acompanhar um ou mais músicos. Os tempos mortos eram em demasia – era como se um ou mais músicos ocupassem os tempos mortos. Mas o neto não os ouvia.
O neto deixou-se ficar a ouvir. Johanes tocou e tocou até o seu clarinete se calar de repente. Não é ali que a música deve acabar, pensou o neto. Levantou o foi ver o que se passava com Johannes.

Johannes olhava para o neto mas não conseguia falar. O neto percebeu que não estava nada bem. Rapidamente, procurou telefonar para o número das emergências. Enganou-se à primeira – tinha telefonado para as informações por engano. Cortou a ligação e desta vez telefonou para o número certo.
Depois de acabar o telefonema, bateu à porta de um vizinho. Pediu-lhe para esperar à porta do prédio pela ambulância – isso faria com que a ambulância encontrasse a morada um pouco mais rápido. Talvez essas dezenas de segundos fizessem a diferença entre a vida ou morte de Johannes.
Voltou para ao pé de Johannes. Apertou-lhe uma das mãos. Johannes tentou apertar de volta mas a sua pressão mal se sentia. O neto olhou para olhos de Johannes. Ainda existia alguma inteligência por detrás daqueles olhos. No entanto, o brilho dos olhos parecia diminuir a cada momento. Uma lágrima percorreu o rosto de Johannes.

Finalmente, a ambulância chegou. Trazia um médico e dois paramédicos. Quando entraram no quarto, o médico pediu para o neto esperar fora do quarto.
A espera fora do quarto pareceu horas para o neto. Todavia, quando o médico veio falar com ele, só tinham passado, no máximo, dez minutos.
As notícias do médico não eram as melhores. Sendo curto e grosso, Johannes tinha morrido. A causa da morte era um tipo de ataque cardíaco raro cujos sintomas de aviso eram dores de estômago.
Se soubesse disso, tinha-o levado para o hospital, pensou o neto – uma lágrima começou a percorrer o seu rosto. Talvez o tivesse salvo. Mas quem não sabe é como quem não vê.

O médico e os paramédicos retiraram-se. O vizinho ficou e os outros foram aparecendo. Não é bom ficar sozinho agora, pensaram vários.
Para o neto, os vizinhos estarem no apartamento ou não, não fazia qualquer diferença. Falavam com ele, mas não percebia nada. Dirigiu-se para o quarto onde o corpo de Johannes estava. Tocou no rosto de Johannes. Está quente. Parece estar a dormir. L

Passaram várias horas. O sol nasceria dentro de poucas horas. O neto voltou a tocar no rosto de Johanes. Desta vez, o rosto estava frio. O neto perdeu qualquer ilusão que Johannes acordasse.

(Ivo Dias de Sousa)

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