segunda-feira, 6 de julho de 2009

Não foi bem assim


E agora tenho um reparo a fazer: o homem entrou e a gente pôs-se a ouvi-lo? Não foi bem assim.
Antes que a Isabel parasse de abanar os seus cabelos de fogo ao ritmo a que o Mané dedilhava o samba, antes que o Mané parasse de o dedilhar, antes que os inveterados da nicotina voltassem a pingar para dentro, antes que o rei do tabuleiro se imobilizasse no ar esquecido da guerra, antes que o Cristiano tirasse a mão da perna da moça que acariciava debaixo da mesa e o Sérgio se calasse devido ao arroto sonoro e histórico que o materializou oficialmente pela primeira vez no Tejo Bar, já o escritor me havia desfiado, à sua maneira característica de comentador desportivo sem pausas para respirar uma fiada substâncial de material autobiográfico, que apreendi vagamente durante o tempo impreciso que durou o meu embasbacamento habitual, o meu catatonismo revolto e angustiado que tantos problemas me arranja quando me acomete no trânsito ou ao balcão quando vou para pedir um café, a imagem em que o meu cérebro petrifica para aquecer o coração, a de um editor a nadar à pato no sinistro Aqueronte, implorando a ajuda do meu barqueiro velho e esquálido que o ignora rotundamente com o dedo médio em riste.
Só o ouvi realmente no momento em que confessou as suas próprias frustrações editoriais. E enquanto ele se apresentava, então para todos, com dois enes, já eu percebia que sem querer tinha deixado escapar algo de fundamentalmente belo, algo que mais tarde haviamos de querer reconstruir desajeitadamente com os dedos, a narração sempre impraticável de uma vida.

(Vitória F.)

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